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27.8.03

Tráfico Negreiro e Esclavagismo Alienígena 
O fenómeno da escravatura constituiu, seguramente, o vector que mais radicalmente alterou as formações sociais africanas tradicionais. Durante algum tempo pretendeu-se que os negreiros apenas encaminharam e redimensionaram um fenómeno social que na África sub-sahariana tinha já longa tradição. Importa, contudo, estabelecer a destrinça entre o esclavagismo alienígena — também designado por «escravatura doméstica» — e a escravatura e tráfico negreiro implementados pelos europeus a partir do século XV, quando, em resultado da caça aos escravos, as sociedades africanas conheceram profundas alterações quer na direcção do despotismo, quer na adopção de um tráfico subsidiário do dos europeus. Sem negar a existência prévia de escravatura na chamada África Negra — diversos testemunhos evocam-na amiúde — é necessário acentuar que esses, então, novos desígnios das sociedades africanas eram em grande parte, quando não totalmente, o efeito e nunca a condição do aparecimento desse esclavagismo alienígena. José Capela [Escravatura. Conceitos. A Empresa do Saque, Porto] estabeleceu, nos termos que nos parecem os mais correctos, um quadro diacrítico fundamental para situar o esclavagismo alienígena em África, o qual obedeceria, de facto, a outra categorização de valores, diferentes daqueles violentamente introduzidos pelo tráfico negreiro que imediatamente acompanhou, quando não motivou, a expansão ultramarina:
«(...) a concepção e a prática de escravatura africana são algo que se distingue das concepção e prática europeias. Enquanto, na Europa, o escravo era, verdadeiramente, um semovente desprovido do controlo da sua fora de trabalho e dos meios de produção que utilizava, assim como da totalidade do produto do seu trabalho apropriado por outrem, na África era um elemento entrado em clã estranho, a grande família, ido de fora, alheio, portanto, aos laços de parentesco sobre que repousava o fundamento da comunidade. Não beneficiava dos direitos inerentes ao componente do clã, mas também não era, simplesmente, nem principalmente, um instrumento de trabalho, como tal apropriado pelo mesmo clã. Este intruso, se tinha, é certo, pelos serviços prestados, e só por isso, um valor económico, se não fazia parte da família (que era toda a comunidade clânica), o seu verdadeiro valor advinha-lhe não tanto do rendimento servil como sobretudo da sumptuária e do poder político adquiridos com o seu número».
Esta distinção, assim formalmente estabelecida, não invalida, contudo, que após a generalização do tráfico negreiro alguns sectores das sociedades africanas colaborassem, sob diversas formas, no processo esclavagista. Papel decisivo no alargamento do tráfico negreiro foi o desempenhado pelos intermediários locais, os célebres lançados, tangomaos e pumbeiros, indivíduos angariadores de escravos, ou, ainda, o envolvimento activo, a partir do século XIX, de entidades étnicas, como os Chikunda (na realidade uma etnia compósita) na África Central e Oriental, etnias «courtière» especializadas na angariação de escravos e seu encaminhamento para o mercado. Após o desmembramento do sistema dos Prazos da Coroa do vale do Zambeze no primeiro quartel do século XIX (e antes que se estabelecessem as companhias majestáticas) os exércitos de escravos chikunda que serviam os diversos prazeros (arrendatários), porque não participavam na produção agrícola, encontraram na arregimentação de escravos a principal fonte de subsistência [a este propósito, ver o excelente texto de Allen F. Isaacman (1972), «The origin, formation and early history of the Chikunda of south central Africa», The Journal of African History, XIII (3), Londres].

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