2.9.03
Ainda o relativismo cultural e o multiculturalismo
Felizmente há gente assim, que pensa bem e consequentemente. O Bruno S.M., do Avatares de um Desejo, não desistiu de completar o seu post sobre Lévi-Strauss e o relativismo cultural, e ainda bem que o fez. E porque penso que esta sua mais recente reflexão vem ao encontro de muitas das minhas preocupações aqui no «Companhia de Moçambique», ao caracterizar e descrever o colonialismo, não resisto a, com a devida vénia ao Avatares de um Desejo, aqui transcrever o seu post:
--------------------------------------------------------------
«Creio ser importante, antes de mais, ler as afirmações feitas em 1971 por Lévi-Strauss, resgatando o seu iminente cariz nostálgico em relação a um mundo pontuado de formas puras, registo poeticamente epitomizado em Tristes Tropiques (1955), obra onde o autor derrama a sua desolação, lamentando, qual Colombo atrasado, a “contaminação cultural” que já então marcava a vida dos grupos de Índios amazónicos. É por referência a este desencanto fundador com a “universalização do ocidente”, que Lévi-Strauss, na polémica conferência de 1971, vem articular um hino à criatividade das culturas com a sanção do desejo do seu fechamento e auto-exaltação. No entanto, se é defensável, ou pelo menos compreensível, que perante influências predatórias os grupos estabeleçam lógicas defensivas que se alimentam de amor-próprio, já a sanção de posturas etnocêntricas operada pelo antropólogo, constitui, em abstracto, um registo onde não é difícil pressentir algumas lacunas.
Em primeiro lugar, há que notar o facto da argumentação não se articular de um modo mais efectivo com a história e com as assimetrias nas relações de poder, com os imperialismos e seus epistemicídios, não estabelecendo um suporte conceptual distinto, susceptível de avaliar diferentemente movimentos opressivos das suas resistências (instigadas a apelar e a exagerar a tradição). A referida análise crítica do antropólogo, construída numa espécie de espectralidade em relação às realidades históricas e políticas, permitiu, por exemplo, que as suas ideias fossem apropriadas por grupos xenófobos dos países europeus, como suporte para a expulsão dos imigrantes sob o insólito pretexto da defesa da diversidade cultural dos povos. É aqui, creio, que Lévi-Strauss dorme com o inimigo.
Como Rui M. P. assinala, há um pudor em Lévi-Strauss para falar das relações de poder e das condições sócio-politicas que permitiram a empreitada antropológica. No entanto, são essas mesmas relações que subjazem o discurso de um Lévi-Strauss agastado com a permeabilidade do mundo ao projecto “evangélico” da modernidade ocidental (ironizo), de que o colonialismo é um dos seus dispositivos.
Assim, ao colocar em abstracto o vislumbre de um mundo de culturas irredutíveis, apaixonadas por si próprias, glorificando os seus heróis e constituindo inimigos em redor, Lévi-Strauss pouco mais pode do que augurar a promessa tantas vezes cumprida de antagonismos destrutivos e de tensões irresolúveis. Neste sentido, creio, a "paixão" recupera o sentido etimológico do confronto com a finitude.
Em segundo lugar, e isto coloca-me num registo levemente utópico, entendo que o esvaziamento da diversidade e da criatividade cultural do mundo não é a consequência necessária do encontro de diferentes formações culturais. E se é verdade que Lévi-Strauss tem subjacente a vocação epistemicida da modernidade ocidental, esquece-se que foi exactamente a paixão desta por ela própria, articulada com um sistema de exploração económica, que conduziu à mais violenta depuração da criatividade dos povos. O ressentimento histórico, as assimetrias económicas e militares, e a continuada exploração, vigiam as possibilidades para que o multiculturalismo seja bem mais de que um “corporate multiculturalism”, ou seja, a proliferação da diferença num “circuito do mesmo”. Não é a pureza intacta das culturas que garante a diversidade cultural, seria, isso sim, o interculturalismo feito de uma disposição para a aprendizagem com o outro, fora de relações de antagonismo.
Na verdade, as culturas nunca foram puras, quando muito híbridos estabilizados, atente-se no mais que polémico livro de Martin Bernal, Black Athena, onde o erudito autor fala das origens africanas da cultura grega e do processo de branqueamento da cultura helénica na construção de uma purificação ocidental. Nesse sentido, antes de celebrar o multiculturalismo importa perceber a multiculturalidade das nossas raízes/rotas, assim, creio, a paixão das formações culturais por elas mesmas poderá emular a paixão pelo híbrido criativo a advir encontro de culturas.
P.S. O facto da análise de Lévi-Strauss não se deter nas relações de colonialismo que permitiram a emergência da antropologia, como assinala Rui M. P., faz lembrar o paradoxo do fim da antropologia conforme desenhou Baudrillard. O filósofo evoca um episódio em que alguns antropólogos lutavam pela preservação de um grupo étnico isolado, os Tadasay, mas, ao quererem preservá-los do mundo ocidental, estavam a defendê-los a sua própria intromissão. Criando o sublime simulacro do fim da Antropologia. De facto, a antropologia alojou-se no colonialismo e na historicidade ocidental, mas, como diz Foucault em As palavras e as coisas, lá acabou por se libertar dos jogos históricos que a viram nascer para fazer o caminho inverso».
-------------------------------------------------------------------
Apesar da "simpatia" de Foucault, não estejamos tão certos disso. A forte ideologização de todo o aparato crítico do post-colonialismo faz-me ter muitas dúvidas sobre o sentido desse «caminho inverso». Após estas contribuições para-antropológicas, esperemos que o Aviz esteja um pouco mais «iluminado» sobre a extensão do conceito «multiculturalismo».
--------------------------------------------------------------
«Creio ser importante, antes de mais, ler as afirmações feitas em 1971 por Lévi-Strauss, resgatando o seu iminente cariz nostálgico em relação a um mundo pontuado de formas puras, registo poeticamente epitomizado em Tristes Tropiques (1955), obra onde o autor derrama a sua desolação, lamentando, qual Colombo atrasado, a “contaminação cultural” que já então marcava a vida dos grupos de Índios amazónicos. É por referência a este desencanto fundador com a “universalização do ocidente”, que Lévi-Strauss, na polémica conferência de 1971, vem articular um hino à criatividade das culturas com a sanção do desejo do seu fechamento e auto-exaltação. No entanto, se é defensável, ou pelo menos compreensível, que perante influências predatórias os grupos estabeleçam lógicas defensivas que se alimentam de amor-próprio, já a sanção de posturas etnocêntricas operada pelo antropólogo, constitui, em abstracto, um registo onde não é difícil pressentir algumas lacunas.
Em primeiro lugar, há que notar o facto da argumentação não se articular de um modo mais efectivo com a história e com as assimetrias nas relações de poder, com os imperialismos e seus epistemicídios, não estabelecendo um suporte conceptual distinto, susceptível de avaliar diferentemente movimentos opressivos das suas resistências (instigadas a apelar e a exagerar a tradição). A referida análise crítica do antropólogo, construída numa espécie de espectralidade em relação às realidades históricas e políticas, permitiu, por exemplo, que as suas ideias fossem apropriadas por grupos xenófobos dos países europeus, como suporte para a expulsão dos imigrantes sob o insólito pretexto da defesa da diversidade cultural dos povos. É aqui, creio, que Lévi-Strauss dorme com o inimigo.
Como Rui M. P. assinala, há um pudor em Lévi-Strauss para falar das relações de poder e das condições sócio-politicas que permitiram a empreitada antropológica. No entanto, são essas mesmas relações que subjazem o discurso de um Lévi-Strauss agastado com a permeabilidade do mundo ao projecto “evangélico” da modernidade ocidental (ironizo), de que o colonialismo é um dos seus dispositivos.
Assim, ao colocar em abstracto o vislumbre de um mundo de culturas irredutíveis, apaixonadas por si próprias, glorificando os seus heróis e constituindo inimigos em redor, Lévi-Strauss pouco mais pode do que augurar a promessa tantas vezes cumprida de antagonismos destrutivos e de tensões irresolúveis. Neste sentido, creio, a "paixão" recupera o sentido etimológico do confronto com a finitude.
Em segundo lugar, e isto coloca-me num registo levemente utópico, entendo que o esvaziamento da diversidade e da criatividade cultural do mundo não é a consequência necessária do encontro de diferentes formações culturais. E se é verdade que Lévi-Strauss tem subjacente a vocação epistemicida da modernidade ocidental, esquece-se que foi exactamente a paixão desta por ela própria, articulada com um sistema de exploração económica, que conduziu à mais violenta depuração da criatividade dos povos. O ressentimento histórico, as assimetrias económicas e militares, e a continuada exploração, vigiam as possibilidades para que o multiculturalismo seja bem mais de que um “corporate multiculturalism”, ou seja, a proliferação da diferença num “circuito do mesmo”. Não é a pureza intacta das culturas que garante a diversidade cultural, seria, isso sim, o interculturalismo feito de uma disposição para a aprendizagem com o outro, fora de relações de antagonismo.
Na verdade, as culturas nunca foram puras, quando muito híbridos estabilizados, atente-se no mais que polémico livro de Martin Bernal, Black Athena, onde o erudito autor fala das origens africanas da cultura grega e do processo de branqueamento da cultura helénica na construção de uma purificação ocidental. Nesse sentido, antes de celebrar o multiculturalismo importa perceber a multiculturalidade das nossas raízes/rotas, assim, creio, a paixão das formações culturais por elas mesmas poderá emular a paixão pelo híbrido criativo a advir encontro de culturas.
P.S. O facto da análise de Lévi-Strauss não se deter nas relações de colonialismo que permitiram a emergência da antropologia, como assinala Rui M. P., faz lembrar o paradoxo do fim da antropologia conforme desenhou Baudrillard. O filósofo evoca um episódio em que alguns antropólogos lutavam pela preservação de um grupo étnico isolado, os Tadasay, mas, ao quererem preservá-los do mundo ocidental, estavam a defendê-los a sua própria intromissão. Criando o sublime simulacro do fim da Antropologia. De facto, a antropologia alojou-se no colonialismo e na historicidade ocidental, mas, como diz Foucault em As palavras e as coisas, lá acabou por se libertar dos jogos históricos que a viram nascer para fazer o caminho inverso».
-------------------------------------------------------------------
Apesar da "simpatia" de Foucault, não estejamos tão certos disso. A forte ideologização de todo o aparato crítico do post-colonialismo faz-me ter muitas dúvidas sobre o sentido desse «caminho inverso». Após estas contribuições para-antropológicas, esperemos que o Aviz esteja um pouco mais «iluminado» sobre a extensão do conceito «multiculturalismo».
Visitors: