29.9.03
Ideias sobre a guerra colonial: extremismo e candura.
No jornal Público de hoje, Mário Tomé, o Major, esse mesmo, publica um texto de opinião sob o título «Trocando umas ideias sobre a guerra colonial». Ao que parece, motivado por notícia da jornalista Ana Sá Lopes a propósito da estreia do filme de José Carlos Oliveira «Preto e Branco» publicada nas páginas daquele diário. Enquadrando o texto da jornalista, teriam sido recolhidas as opiniões do «historiador António Costa Pinto e do ensaísta, professor e ex-comando Rui de Azevedo Teixeira».Quanto a este último, Mário Tomé dedica-lhe não mais que um singelo parágrafo, contrapondo aos aspectos positivos [desenvolvimento económico e social muito acentuado] que Azevedo Teixeira põe em realce na sua declaração sobre a guerra colonial, o raciocínio segundo o qual tais «benefícios colaterais … foram parte do tremendo esforço de guerra, procurando garantir as melhores condições morais e materiais para o êxito das operações. Preparavam o lançamento do napalm, os massacres, as torturas e assassinatos da PIDE, mas também tropas de ocupação, as deportações, os campos de concentração a que os nossos brandos costumes chamavam “aldeamentos”». Importa refrear este esquematismo maniqueísta de Mário Tomé, da mesma forma que não se podem deixar passar em claro todas e quaisquer reassunções laudatórias da guerra colonial. Mas vamos por partes.
Sim, é verdade, já aqui o escrevemos por diversas vezes, o colonialismo português estava investido do mesmo carácter agonístico, do mais despudorado racismo, da pior das iniquidades económicas e sociais, tal e qual os outros colonialismos: não existiram bons e maus colonialismos. Para além das «aparências exteriores» (diversidade nas disposições legislativas, fundamentalmente) a essência era a mesma. E, neste caso, se aqui o afirmamos não o fazemos em nome de nenhum preceito ideológico ou político mas tão-somente apoiados em dados muito objectivos: mais de 20 anos de consulta a fontes primárias do próprio regime colonial não se compadecem com lucubrações mítico-ideológicas. E é precisamente evocando esse respaldo que afirmamos a nossa discórdia com o axioma simplista que Mário Tomé expõe nas páginas do «Público». O desenvolvimento económico das possessões coloniais portuguesas inicia-se durante a 2.ª Guerra Mundial, quando as mercadorias tropicais (algodão, café, óleo de rícino, copra, sisal, etc, etc) das outras potências coloniais deixaram de poder circular livremente em direcção à Europa. Portugal, beneficiando da apregoada neutralidade, vislumbrou de imediato uma fantástica oportunidade de negócio. São dessa altura as Juntas de Comércio do Café, em Angola, do Algodão, em Moçambique, o reforço da legislação do trabalho compelido e a disposição legislativa das culturas obrigatórias, enfim, todo um conjunto de medidas capazes de transformar as possessões coloniais portuguesas de uma empresa deficitária (como de facto o era) num empreendimento rentável (como viria a suceder, antes da guerra colonial). Nos anos da 2.ª Guerra Angola triplicou a produção e a exportação de café e o mesmo sucedeu em Moçambique com o algodão e, alguns anos mais tarde, com o sisal. Até ao advento das guerras coloniais nas três frentes (Angola, Moçambique e Guiné) o regime procede a uma reavaliação de todo o projecto colonial, empreendendo uma verdadeira reocupação, levantando recursos económicos e investindo, realmente, no desenvolvimento da economia colonial. São dessa altura, já entrada a década de 50, os planos quinquenais integrados, as missões científicas, a regulamentação das actividades económicas. Era, de todo o modo, um desenvolvimento divorciado da realidade social, ainda assente na exploração primitiva da mão-de-obra africana. O que as guerras coloniais trouxeram de novo a este modelo económico foi a junção de uma «preocupação» social ou político-social, como se dizia na altura. A passagem de Adriano Moreira pela chefia do Ministério do Ultramar foi, a todos os títulos, decisiva para o surgimento de um reformismo esclarecido, mesmo se, como hoje o sabemos, já estivesse deslocado no tempo. Em resumo, o desenvolvimento económico das colónias portuguesas não servia exclusivamente o esforço da guerra suja, como pretende o Major Tomé, sendo certo, todavia, que com o advento da guerra o regime se viu obrigado a subir o investimento nas colónias (e não nos estamos a referir aos custos directos da guerra), fosse ao nível das comunicações (rede viária, estruturas aeroportuárias e portuárias), fosse ao nível das facilidades logísticas (canais de abastecimento, indústrias transformadoras).
Mas são as declarações do historiador António Costa Pinto que mereceram uma atenção maior por parte de Mário Tomé. Na sua candura de recém-chegado a estas questões coloniais, o meu amigo Costa Pinto apresta-se a perfilhar uma ideia que tem vindo a fazer escol entre nós nos últimos anos, segundo a qual, em síntese, «a Guiné estava perdida, Angola praticamente ganha e Moçambique num impasse». Adicionalmente, Costa Pinto subscreve a ideia de que o exército português poderia ter continuado a resistir em Angola e Moçambique se a conjuntura nacional (o 25 de Abril) e internacional (o fim da guerra-fria) não se alterasse como se alterou. Mas Costa Pinto como historiador (brilhante) que é deveria saber que a História não é feita com «ses». E aproveitando a abertura do flanco, Mário Tomé investe fortemente contra essa argumentação, apregoando a irreversível derrota militar das tropas portuguesas. Porventura, mas apenas porventura, a derrota militar não pudesse deixar de acontecer (já que a derrota política estava anunciada à partida) mas afirmá-la assim tão taxativamente é entrar de novo na História dos «ses». Querem ver como a realidade subverte todas as ficções históricas? Em Março de 1974 as forças anticoloniais angolanas estavam completamente desbaratadas, ao ponto de nesse mesmo ano, desde Janeiro, não ter ocorrido qualquer confronto directo, mas apenas esparso duelo de artilharia na fronteira Leste. Mas na Guiné as forças do PAIGC cercavam Bissau, bombardeavam a messe de oficiais e impediam as operações aéreas da FAP. Menos de trinta anos depois, a situação é esta: as forças armadas angolanas são o 2º exército mais poderoso da África subsahariana (eventualmente ultrapassado, apenas, pelo da África do Sul) e a espantosa força militar dos nacionalistas guineenses transformou-se num exército virtual, atravessado por facções étnicas, mal equipado e ineficaz. Outra atenção merece a afirmação de Costa Pinto de que a descolonização «não se deveu à pressão militar dos guerrilheiros», mas sim ao «colapso do sistema político metropolitano», ideia que merece forte contestação de Mário Tomé: «o sistema político entra em colapso no 25 de Abril exactamente por querer continuar uma guerra de que precisava para se manter, mas para a qual já não tinha unhas». Se não se tratasse de uma história dramática, apetecer-nos-ia dizer «ainda bem que havia colónias … e guerrilheiros nacionalistas … e guerra colonial … e tudo o resto». Que seria de nós, sem a «pressão dos guerrilheiros», sem «a derrota militar nas colónias»? Ficaríamos, para todo o sempre, entregues a uma ditadura fascista?? No seu afã, quase obsessivo, em afirmar a derrota militar, Mário Tomé ignora, ou faz por ignorar, a luta política na metrópole, os dados objectivos de uma oposição política cada vez mais assertiva, como o demonstrou a campanha delgadista de 1958, ou, quinze anos depois, o 3.º Congresso da Oposição Democrática em Aveiro (Abril de 1973).
Talvez tenha chegado o tempo de uma investigação sobre o fenómeno colonial, incluindo a guerra colonial, menos dependente de leituras político-ideológicas e liberta da falsa candura dos lugares-comuns.
Sim, é verdade, já aqui o escrevemos por diversas vezes, o colonialismo português estava investido do mesmo carácter agonístico, do mais despudorado racismo, da pior das iniquidades económicas e sociais, tal e qual os outros colonialismos: não existiram bons e maus colonialismos. Para além das «aparências exteriores» (diversidade nas disposições legislativas, fundamentalmente) a essência era a mesma. E, neste caso, se aqui o afirmamos não o fazemos em nome de nenhum preceito ideológico ou político mas tão-somente apoiados em dados muito objectivos: mais de 20 anos de consulta a fontes primárias do próprio regime colonial não se compadecem com lucubrações mítico-ideológicas. E é precisamente evocando esse respaldo que afirmamos a nossa discórdia com o axioma simplista que Mário Tomé expõe nas páginas do «Público». O desenvolvimento económico das possessões coloniais portuguesas inicia-se durante a 2.ª Guerra Mundial, quando as mercadorias tropicais (algodão, café, óleo de rícino, copra, sisal, etc, etc) das outras potências coloniais deixaram de poder circular livremente em direcção à Europa. Portugal, beneficiando da apregoada neutralidade, vislumbrou de imediato uma fantástica oportunidade de negócio. São dessa altura as Juntas de Comércio do Café, em Angola, do Algodão, em Moçambique, o reforço da legislação do trabalho compelido e a disposição legislativa das culturas obrigatórias, enfim, todo um conjunto de medidas capazes de transformar as possessões coloniais portuguesas de uma empresa deficitária (como de facto o era) num empreendimento rentável (como viria a suceder, antes da guerra colonial). Nos anos da 2.ª Guerra Angola triplicou a produção e a exportação de café e o mesmo sucedeu em Moçambique com o algodão e, alguns anos mais tarde, com o sisal. Até ao advento das guerras coloniais nas três frentes (Angola, Moçambique e Guiné) o regime procede a uma reavaliação de todo o projecto colonial, empreendendo uma verdadeira reocupação, levantando recursos económicos e investindo, realmente, no desenvolvimento da economia colonial. São dessa altura, já entrada a década de 50, os planos quinquenais integrados, as missões científicas, a regulamentação das actividades económicas. Era, de todo o modo, um desenvolvimento divorciado da realidade social, ainda assente na exploração primitiva da mão-de-obra africana. O que as guerras coloniais trouxeram de novo a este modelo económico foi a junção de uma «preocupação» social ou político-social, como se dizia na altura. A passagem de Adriano Moreira pela chefia do Ministério do Ultramar foi, a todos os títulos, decisiva para o surgimento de um reformismo esclarecido, mesmo se, como hoje o sabemos, já estivesse deslocado no tempo. Em resumo, o desenvolvimento económico das colónias portuguesas não servia exclusivamente o esforço da guerra suja, como pretende o Major Tomé, sendo certo, todavia, que com o advento da guerra o regime se viu obrigado a subir o investimento nas colónias (e não nos estamos a referir aos custos directos da guerra), fosse ao nível das comunicações (rede viária, estruturas aeroportuárias e portuárias), fosse ao nível das facilidades logísticas (canais de abastecimento, indústrias transformadoras).
Mas são as declarações do historiador António Costa Pinto que mereceram uma atenção maior por parte de Mário Tomé. Na sua candura de recém-chegado a estas questões coloniais, o meu amigo Costa Pinto apresta-se a perfilhar uma ideia que tem vindo a fazer escol entre nós nos últimos anos, segundo a qual, em síntese, «a Guiné estava perdida, Angola praticamente ganha e Moçambique num impasse». Adicionalmente, Costa Pinto subscreve a ideia de que o exército português poderia ter continuado a resistir em Angola e Moçambique se a conjuntura nacional (o 25 de Abril) e internacional (o fim da guerra-fria) não se alterasse como se alterou. Mas Costa Pinto como historiador (brilhante) que é deveria saber que a História não é feita com «ses». E aproveitando a abertura do flanco, Mário Tomé investe fortemente contra essa argumentação, apregoando a irreversível derrota militar das tropas portuguesas. Porventura, mas apenas porventura, a derrota militar não pudesse deixar de acontecer (já que a derrota política estava anunciada à partida) mas afirmá-la assim tão taxativamente é entrar de novo na História dos «ses». Querem ver como a realidade subverte todas as ficções históricas? Em Março de 1974 as forças anticoloniais angolanas estavam completamente desbaratadas, ao ponto de nesse mesmo ano, desde Janeiro, não ter ocorrido qualquer confronto directo, mas apenas esparso duelo de artilharia na fronteira Leste. Mas na Guiné as forças do PAIGC cercavam Bissau, bombardeavam a messe de oficiais e impediam as operações aéreas da FAP. Menos de trinta anos depois, a situação é esta: as forças armadas angolanas são o 2º exército mais poderoso da África subsahariana (eventualmente ultrapassado, apenas, pelo da África do Sul) e a espantosa força militar dos nacionalistas guineenses transformou-se num exército virtual, atravessado por facções étnicas, mal equipado e ineficaz. Outra atenção merece a afirmação de Costa Pinto de que a descolonização «não se deveu à pressão militar dos guerrilheiros», mas sim ao «colapso do sistema político metropolitano», ideia que merece forte contestação de Mário Tomé: «o sistema político entra em colapso no 25 de Abril exactamente por querer continuar uma guerra de que precisava para se manter, mas para a qual já não tinha unhas». Se não se tratasse de uma história dramática, apetecer-nos-ia dizer «ainda bem que havia colónias … e guerrilheiros nacionalistas … e guerra colonial … e tudo o resto». Que seria de nós, sem a «pressão dos guerrilheiros», sem «a derrota militar nas colónias»? Ficaríamos, para todo o sempre, entregues a uma ditadura fascista?? No seu afã, quase obsessivo, em afirmar a derrota militar, Mário Tomé ignora, ou faz por ignorar, a luta política na metrópole, os dados objectivos de uma oposição política cada vez mais assertiva, como o demonstrou a campanha delgadista de 1958, ou, quinze anos depois, o 3.º Congresso da Oposição Democrática em Aveiro (Abril de 1973).
Talvez tenha chegado o tempo de uma investigação sobre o fenómeno colonial, incluindo a guerra colonial, menos dependente de leituras político-ideológicas e liberta da falsa candura dos lugares-comuns.
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