14.10.03
A codificação dos «usos e costumes indígenas» - 9: o fim da complacência.

«…viu-se cada vez mais que o fim geral da civilização e da nacionalização [dos indígenas] que se pretendia atingir apenas seria conseguido por uma organização que atendesse às próprias condições de existência do indigenato. (…) Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, os direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais. Não submetemos a sua vida individual, doméstica e pública, (…) às nossas leis políticas, aos nossos códigos administrativos, civis, comerciais e penais, à nossa organização judiciária. Mantemos para eles uma ordem jurídica própria do estado das suas faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos seus sentimentos, da sua vida, sem prescindirmos de os ir chamando por todas as formas convenientes à elevação, cada vez maior, do seu nível de existência».
Do seu articulado ressaltam, de imediato, dois princípios: reafirma e impõe a ideia da codificação do «direito indígena» (artigo 21.º); estabelece, pela primeira vez, o princípio da individualização da pena quanto a réus «indígenas», estipulando que enquanto não fosse publicado um Código Penal «adequado» a tais réus, se atendessem as do Código Penal metropolitano de 1886, «tendo, porém, na devida atenção o estado e civilização dos indígenas e seus costumes».
Talvez que evocando esta última directiva, a Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas recuperou o projecto de Pereira Cabral, enviando-o para apreciação superior em Agosto de 1927. O parecer do Tribunal da Relação de Moçambique não poderia ser mais incisivo, dando como ilegal o projecto de «Código de Milandos» que lhe fora remetido, fundamentando-se no facto de aquele projecto pretender «submeter ao mesmo regimento jurídico os indígenas de toda a colónia, unificando os usos e costumes e criando talvez novos costumes, o que vai decerto retardar o progresso e causar sérias perturbações na vida doméstica dos indígenas» [«Parecer do Tribunal da Relação de Moçambique acerca da Proposta de Código dos Milandos remetida em 25 de Agosto de 1927 (Ofício n.º 1746) pela Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas, 19 de Setembro de 1927»]. Alegava Manuel Moreira da Fonseca, juiz-presidente do Tribunal da Relação, que aquela proposta contrariava o estipulado no art.º 2.º do «Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas» que ordenava que as codificações dos usos e costumes se procedessem por circunscrições administrativas ou regiões, uma vez que aqueles variavam de região para região, consoante a «tribo, a raça e os contactos com os europeus». Era, manifestamente, o encerrar de um ciclo. O Estado Novo sabia ao que vinha, buscava atingir certos objectivos que não se compadeciam com complacências algo filantrópicas.
[foto: «Inhambane – Mercado de Homoíne». Todo o sistema do comércio colonial está sintetizada nesta imagem: o administrador português e os comerciantes indianos, o cipaio, o intermediário, os produtores africanos].
8.10.03
A codificação dos «usos e costumes indígenas» - 8: ignorância e preconceito.

[foto: «Inhambane. Depois do trabalho». Apesar de não datados, os postais que temos vindo a reproduzir, deverão ter sido impressos em finais da década de 20, início dos anos 30. Reproduzem, de forma eloquente, a mentalidade colonial da época, sustentada no mais arreigado racismo].
7.10.03
A codificação dos «usos e costumes indígenas» - 7: os «ideais» republicanos.

Durante a vigência da I República, um nome se destaca em Moçambique na condução dos «negócios indígenas»: António Augusto Pereira Cabral. Começamos por o encontrar, entre 1908 e 1914, como Secretário Civil do governo do — para já incontornável — distrito de Inhambane. A acção de maior relevo que até nós chegou foi, como não poderia deixar de ser, uma codificação dos usos e costumes do distrito. Publicado em 1910, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas do Districto de Inhambane apresenta-se como uma síntese do «saber acumulado» sobre a matéria. Nada de significativamente novo poderemos encontrar ao longo das suas páginas, a não ser algumas reflexões esparsas sobre o entendimento da política colonial, a administração dos «indígenas» e a imperiosidade dessa «contemporização» com os usos e costumes, essas sim muito reveladoras dessa nova mentalidade colonial anti-liberal:
«A riqueza de uma colónia está na proporção da densidade da população, mas se este elemento poderoso de riqueza não for bem administrado, para que servirá?! Pode haver boa administração desde que se não conheçam bem os administrados? É para duvidar!»
E, logo de seguida, Pereira Cabral ajuda-nos a compreender, na sua essência, o empenho das autoridades dessa nova era colonial em codificar os usos e costumes. Não se trata já da contemporização ou da condescendência piedosa, algo filantrópica até, que, de alguma forma, motivara os mentores liberais do início da segunda metade de Oitocentos. Esta reassunção nas primeiras décadas do século XX do interesse pelos usos e costumes destinava-se a assegurar a manutenção de um estatuto permanente — e, se possível, perene — de inferioridade dos africanos colonizados, pois que, a não serem regulamentados esses usos e costumes, os africanos, enquanto cidadãos, poderiam sentir-se tentados a reivindicar regalias, direitos e deveres inscritos no Direito Civil e Criminal dos europeus:
«Querer aplicar a pretos as mesmas leis pelas quaes se regulam os brancos, e tudo quanto ha de mais absurdo e de pessimas consequências, para o futuro de uns e de outros. Ao Estado compete legislar, e ao branco, que por dever de ofício ou mecessidade da sua ocupação tem que estar em contacto com o indígena, pertence-lhe fazer que o nosso domínio seja proveitoso, não odiada a nossa superioridade, trata-lo, enfim, com a equidade e justiça que um ente inferior merece de um outro, que lhe é e será sempre superior».
[foto: «Inhambane. O trabalho nobilita o homem». Imagem amavelmente cedida por António Carvalhal, da colecção de postais reunida por seu pai, Amilcar Vieira da Silva. Os próximos posts serão ilustrados por imagens provenientes dessa colecção].
4.10.03
A codificação dos «usos e costumes indígenas» - 6: a matriz inhambanense.

Poder-nos-emos inquirir sobre a proficuidade do distrito de Inhambane nesta matéria, a única divisão administrativa da colónia que sempre correspondeu, por vezes até em antecipação, às demandas legislativas para a codificação dos «usos e costumes». De resto, o «modelo» de Inhambane foi até seguido na outra grande colónia portuguesa em África. Por decreto de 27 de Maio de 1911 [publicado no Boletim Oficial de Angola n.º 25, de 24 de Junho do mesmo ano] o governo metropolitano mandou aplicar em todo o território da colónia de Angola, o sistema de administração adoptado no distrito de Inhambane, constante da Portaria Provincial n.º 671-A, de 12 de Setembro de 1908, de Moçambique. Se analisarmos em detalhe os sucessivos «Códigos de Milandos» inhambenses produzidos, depressa constataremos que são versões, acrescentadas e anotadas, de uma matriz original, o Codigo Cafreal do Districto de Inhambane de 1852. Surpreendente ainda o facto de nas três primeiras décadas do século XX, no período grosso modo correspondente à vigência da I República, a codificação inhambense ter servido de matriz a uma grande parte das iniciativas produzidas no domínio da codificação dos usos e costumes da colónia, sobretudo pela intervenção de António Augusto Pereira Cabral, empenhado colonialista.
[foto: Freire de Andrade à porta da sua tenda de campanha em Magul (Gaza), Setembro de 1895]
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