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16.3.04

A Igreja colonial: incompatibilidades culturais, práticas repressoras. 
Os arquivos registam interessantes auto de averiguações originado pela incompatibilidade entre os ditames da moral cristã ocidental e os «usos e costumes indígenas»:
«O arguido Jalente Xavier Mazivila havia lobolado, há pelo menos dois anos e meio, a indígena Alda ou Aida Amélia, tendo pago integralmente ao pai desta o lobolo ajustado, no valor de 3.500$00, pelo que, segundo os usos e costumes gentílicos, o casamento estava consumado, passando a Aida a viver com o marido, na casa deste. Porque a Aida era cristã e frequentava a Escola da Missão (S. Pedro de Chissano), o Reverendo Coadjutor procurou convencer o Jalente de que o casamento entre uma cristã e um pagão era impossível e, como tal, deveria ele também fazer-se cristão ou então desfazer o casamento, recebendo novamente do sogro o dinheiro do lobolo mas que, de qualquer forma, a Aida Amélia deveria regressar a casa do pai».
Após ter arrastado a «cristã» para casa do pai, o reverendo, com o auxílio de um professor da Missão, tentaram retirar de casa do marido os pertences da rapariga. O marido, bem como o pai deste resistiram, geraram-se cenas de pugilato até que intervieram as autoridades administrativas e foi lavrado o auto que acima transcrevemos [«Autos de averiguações vindos do Governo do Distrito de Gaza, em que são arguidos os indígenas Jalente Xavier Mazivila e seu pai Xavier Coji Mazivila e ofendido o indígena Avelino Manuel Tivane», Arquivo Histórico de Moçambique, Maputo]. Encontram-se dezenas de processos semelhantes nos fundos da Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas, mas o que este tem de peculiar é o muito singelo despacho do Governador de Gaza: «Aos Negócios Indígenas para conhecimento superior, pois parece-me conveniente que pelo Arcebispado sejam dadas ordens aos missionários que não criem situações como esta donde só saem com evidente quebra de prestígio».
Por essa mesma altura, no distrito de Inhambane, o administrador de Morrumbene, Manuel Dias Belchior, desesperado com as constantes diatribes do Superior da Missão de Nossa Senhora da Conceição, Padre Alberto Moura, conduzindo casais de «amancebados» à sede da administração para que as autoridades os obrigassem a casar, desabafava para as instâncias superiores estar convencido que «…cabe ao sacerdote convencer os amigados a casar-se e não às autoridades civis ou judiciais, constrangê-los a isso».
Pelos testemunhos que aqui temos evocado, percebe-se que além de dificilmente conseguirem conciliar a contemporização com os «usos e costumes indígenas» com as normas do direito civil e penal português e com os ditames da «moral e da humanidade», aos administrativos coloniais deparava-se-lhes uma dificuldade suplementar: as pressões dos agentes da missionação católica, nada atinentes, pelo menos no que à «moral pública» dizia respeito, com os «usos e costumes gentílicos». Muitos anos passariam até a Igreja católica, ou pelo menos uma parte dela, afirmar uma prática mais consentânea com o respeito pelas culturas e sociedades africanas.

10.3.04

Lobolo e levirato: a avaliação colonial. 
Mesmo em datas mais tardias, 1959 ou 1960, são ainda reportados oficialmente diversos conflitos respeitantes à contemporização com o fenómeno do lobolo e práticas associadas. Em 1 de Novembro de 1959 o Administrador da Circunscrição de Panda, Júlio dos Santos Peixe, remetia ao Governador do Distrito de Inhambane um relatório dando conta de múltiplos conflitos que teria de resolver respeitantes à situação legal das viúvas e órfãos menores. Tais conflitos decorriam do disposto na «Convenção suplementar relativa à abolição da Escravatura, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravatura» [Decreto-lei n.º 42 172, de 2 de Março de 1959], decreto-lei esse que reforçava o consignado no artigo n.º 42 do decreto n.º 35 461, de 22 de Janeiro de 1946 [«A mulher indígena é inteiramente livre na escolha do marido. Não são reconhecidos quaisquer costumes ou outras regras segundo as quais a mulher ou filhos devam ou possam considerar-se pertença de parentes do marido quando este falecer»], que, confrontados com a prática recorrente do levirato(união da viúva com o irmão do marido falecido) na região, sancionada pelo direito consuetudinário local, levantavam sérios problemas de avaliação e «gestão social» por parte do pessoal administrativo no exercício das suas funções judiciais. Em 17 de Novembro de 1959 o Governador de Inhambane remeteria o assunto para a Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas, a qual encarregaria o Administrador de 3.ª classe, António Rita-Ferreira, de redigir uma informação respeitante ao assunto. Reconhecendo a validade legal do conflito, Rita-Ferreira seria de parecer que, seguindo o exemplo de outros direitos coloniais, a prática do levirato não poderia deixar de ser entendida como uma contraparte estrutural do lobolo, indispensável mecanismo para assegurar a estabilidade do casamento tradicional: sem que o lobolo acabasse ou fosse, por lei, banido, o levirato não poderia ser reprimido pelas autoridades administrativas. Mas como veremos em próximos posts, a Igreja católica possuía e praticava um entendimento diferente da questão.

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