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30.8.04

Os Álbuns de Santos Rufino - 5: os caminhos de ferro de Moçambique. 

«Lourenço Marques: aspecto do recinto da Estação Central dos Caminhos de Ferro, com a ramificação de linhas que servem o pôrto», em João dos Santos Rufino, Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique, vol. I («Lourenço Marques. Panoramas da Cidade»), Lourenço Marques, 1929 [recorte de fotografia panorâmica].

Os Álbuns de Santos Rufino - 4: a «baixa» de Lourenço Marques. 

«Lourenço Marques e a sua grande e linda Baía», em João dos Santos Rufino, Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique, vol. I («Lourenço Marques. Panoramas da Cidade»), Lourenço Marques, 1929.

[na fotografia acima reproduzida figura apenas uma terça parte da vista tomada a partir da «barreira», a parte alta da cidade. A fotografia original, panorâmica, com 160 cm de largura, permite ver toda a «baixa» da cidade, em finais da década de 20, mas a sua integral reprodução era impossível. A «baixa» concentrava a maior parte da actividade comercial e, também, alguns edifícios da administração pública. No recorte acima reproduzido pode-se ver em primeiro plano, à direita, aquilo que julgamos ser o edifício do Consulado Britânico, a meio da descida da cidade alta para a «baixa» e, mais à esquerda, o edifício da Imprensa Nacional de Moçambique. Ao fundo, destaca-se a cúpula da Estação Central dos Caminhos de Ferro].

Os Álbuns de Santos Rufino - 3. 

Sita na Rua Consiglieri Pedroso, n.º 76, da antiga Lourenço Marques, «A Portuguêsa» de Santos Rufino, Ltda., apresentava-se em 1929 como «Livraria, Papelaria, Perfumaria e artigos diversos». Apregoava vender livros, papéis para cartas, postais ilustrados, artigos de escritório, bijutarias, lotarias, pautas musicais, canetas e lapiseiras «Conklin», estatuetas, brindes e novidades.
Como casa depositária dos Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique proclamava nas suas páginas as valências e virtudes comerciais do estabelecimento:
«Esta casa recébe semanalmente as ultimas novidades literárias e musicais. Tem sempre o mais compléto stock de artigos de escritório. Vende avulso e por assinatura, os principais jornais da Europa, revistas de sport, ilustrações, figurinos, etc. E tem sempre, para todas as extracções, os mais tentadôres números da Lotaria Provincial».
E mais dizia que possuía o telefone n.º 293, a Caixa Postal n.º 62 e o endereço telegráfico «Africano».

28.8.04

Os Álbuns de Santos Rufino - 2. 

José dos Santos Rufino, comerciante estabelecido na papelaria e livraria «A Portuguêsa» na Rua Consiglieri Pedroso da baixa de Lourenço Marques, foi o editor do mais extensivo levantamento fotográfico realizado na colónia até aos anos 40. Dezenas de postais (alguns em boa hora já referenciados e afixados no Maschamba) e, sobretudo, os 10 álbuns descritivos editados em 1929, atestam a sua paixão pelo registo fotográfico. Aqui o podemos ver, impante, no medalhão central, tendo à sua esquerda o Tenente Mário Costa, que assina a nota introdutória, um texto panegírico sobre as maravilhas da colónia. Não existe qualquer outro dado digno de registo sobre a actividade deste militar em Moçambique mas podemos imaginar (não mais que isso) tratar-se de um daqueles jovens oficiais subalternos destacados pela Junta Militar do Estado Novo para as colónias. No medalhão do extremo oposto, figura o Pe. Vicente do Sacramento que a legenda de Santos Rufino remete para o papel de amigo e principal incentivador da obra. Em segunda linha, H. Graumann e I. Piedade Pó, a quem Santos Rufino agradece a colaboração em algumas partes dos álbuns enquanto «fotógrafos amadores». Quer isto dizer que chamava a si a autoria da maior parte das fotografias e, claro está, na condição de fotógrafo profissional.

27.8.04

Os Álbuns de Santos Rufino - 1. 
Nos últimos anos têm sido publicados em Portugal álbuns fotográficos sobre as ex-colónias. Sucedem-se as tiragens e percebe-se porquê. Uma percentagem importante da população portuguesa tem uma «relação sentimental», quando não biológica, com África. Sobre o verdadeiro sentido dessa relação muito haveria a dizer mas penso que os posts que aqui temos colocado já fornecem um quadro suficientemente compreensível sobre a natureza do colonialismo português e das relações sociais que aí se estabeleceram e que, de alguma forma, permanecem no seio da cultura portuguesa. Muitos desses álbuns fotográficos são editados a partir da recuperação de colecções de postais muito em voga na primeira metade do século XX; outros, reeditam colecções já dos anos 60, peças de propaganda do regime colonial que assim pretendia dar conta do «boom» urbanístico e económico de cidades como Luanda, Nova Lisboa e Lourenço Marques.
Mas a propaganda da causa colonial não foi um exclusivo do tardo-colonialismo português dos anos 60. Empreendedores locais, comerciantes, agentes da administração e da missionação, militares em comissão de serviço, recolhiam e registavam no terreno «vistas típicas e pitorescas» das mais variados aspectos das colónias: panoramas das cidades, edifícios públicos, portos, caminhos-de-ferro, indústrias e casas comerciais, «vida tribal», flora e fauna.
Em Moçambique, durante as décadas de 20 e 30, destacou-se o trabalho de José dos Santos Rufino, fotógrafo, comerciante, dono de «A Portuguêsa» de Santos Rufino, Ltda, livraria e papelaria da baixa de Lourenço Marques.
Em 1929 publicou, em notáveis 10 volumes, Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique de que aqui se deixa fotografia da capa do 1.º volume, «Lourenço Marques. Panoramas da Cidade». Edição de grande aparato gráfico (impressa na África do Sul na casa representante da prestigiada firma alemã de artes gráficas, Broschek & Co.), este 1.º álbum compreende, apenas, 5 fotografias. São, contudo, fotografias panorâmicas, em montagens de 130 x 16 cm, de onde resulta uma visão geral, mas detalhada, da capital da colónia em finais da década de 20. Na contra-capa, o editor mandou gravar, a ouro, os seguintes dizeres:
«Lourenço Marques, um canto da Europa na África do Sul. Cidade moderna, cheia de belezas naturais. Clima explêndido. Uma das terras d’África preferidas como estância de repouso. Cidade de largo futuro comercial e industrial. Hotéis de luxo. Lindos passeios nos subúrbios. Explêndidas estradas de turismo. Banhos de mar. Golf. Pesca».
Edição trilingue (português, inglês, francês), contém, ainda, uma representação gráfica da cidade e um texto de apresentação do Tenente Mário Costa, além de páginas de publicidade à «A Portuguêsa»,a casa comercial de Santos Rufino.
Apesar da vaga saudosista colonial dos últimos anos em Portugal, as fotografias dos álbuns de Santos Rufino não têm sido das mais utilizadas. Os poucos exemplares referenciados estão em bibliotecas públicas, tornando muito difícil a sua integral reprodução para efeitos meramente comerciais. Muito recentemente o Maschamba, do Zé Flávio, fez-nos o favor de relembrar a sua existência, mas parcimonioso como ele raras vezes consegue ser (e ainda bem!) reproduziu, apenas, uma meia-dúzia dessas fotos de Santos Rufino. Pois para aqueles que ficaram seduzidos pelas poucas imagens que aí foram mostradas, o «Companhia de Moçambique» irá reproduzindo, nas próximas semanas (quiçá meses, porque nem sempre há disposição e, sobretudo, tempo) as mais significativas imagens dos 10 álbuns de Santos Rufino.

12.8.04

O degredo dos «canibais». 
O processo de Pebane foi mandado reabrir em 1948 com a nomeação de um novo inquiridor, porque o administrador que em 1947 tomara conta do caso, perante a natureza dos crimes, julgou-se incapaz de instruir processo: por um lado não estava contemplado no «Direito Indígena», por outro não era igualmente referenciado no Direito Penal português. Mesmo assim, na conclusão do processo, em 24 de Agosto de 1948, após parecer da Repartição dos Negócios Indígenas, anuência do Governador Geral de Moçambique e determinação do Ministro das Colónias, foram os «indígenas arguidos» deportados para S. Tomé por 6 anos: o Projecto Definitivo de Código Penal de José Gonçalves Cota não estava efectivamente em vigor uma vez que para «crimes gentílicos» desta natureza propunha, no seu artigo 30.º, uma pena de 20 a 28 anos de degredo. Naquele contexto colonial, a pena de 6 anos de degredo era considerada uma sanção relativamente leve, porventura traindo a inconsistência das «provas» reunidas para acusação.

8.8.04

Os «Mau-Mau» em Moçambique ou a geografia do impossível. 
Em 2 de Abril de 1948 o governador da Zambézia recebe, em «Nota Confidencial», instruções especiais da Repartição Central dos Negócios Indígenas para reabrir o inquérito ao «caso de Pebane»:
«(...) 4- Em face dos bárbaros crimes que constam do referido processo, torna-se urgente libertar as populações indígenas da Colónia de elementos tão perniciosos e uma enérgica repressão, não só servirá de lição aos criminosos que ainda se encontrem em liberdade, mas também de aviso e exemplo aos que, porventura, tenham tendência à prática de feitiçaria, por isso que, uma vez entrados nela, estão implicitamente no caminho do crime, e este, pela forma como é consumado, exclue, por vezes, a possibilidade de chegar ao conhecimento das autoridades, ficando, assim, impune.
5- É de crer que um combate inteligentemente orientado, em que não faltem medidas enérgicas de repressão, debelará o mal, que deve ter ramificações em Mugeba, Munelala e outros postos do distrito
[Zambézia], estendendo-se, possivelmente a rede da “seita” ao Lago Niassa, penetrando no Quénia, onde ultimamente se têm descoberto casos de antropofagia, que as autoridades inglesas têm punido com pena de morte. Deve tratar-se de componentes da tribo Lomué, e daí a necessidade das investigações recaírem, principalmente, nessa tribo, que sendo de origem Macua é, certamente, a mais atrasada de todas as que habitam o norte da Colónia».
Esta nota confidencial, assinada pelo Chefe da Repartição Central dos Negócios Indígenas, o inspector A. Furtado Montanha, merece uns quantos comentários e informações adicionais. Antes de mais, atesta o profundo desconhecimento não só da geografia como também da etnografia da colónia. Montanha imagina uma relação quase umbilical entre os Lomué da Zambézia e as primeiras manifestações proto-nacionalistas de um fenómeno que, anos mais tarde, ficaria conhecido como o movimento «Mau-Mau» do Quénia, com um atalho através do lago Niassa, num inimaginável salto de alguns milhares de quilómetros; mais, quase se pode depreender das suas palavras que os casos do Quénia eram de origem Lomué, quando se sabia, já na altura, que o fenómeno tinha uma inscrição étnica essencialmente Kikuyu, grupo com o qual os Macua-Lomué não têm qualquer afinidade histórica ou cultural, apesar de serem, do ponto de vista linguístico, povos bantu como largas centenas de outros grupos étnicos africanos. Entre a ignorância e a manipulação mais ignóbil, tudo servia para o propósito da justificação da dominação colonial.
[Foto: Guerreiros «mau-mau» na região de Meru, Quénia, ca. 1951].

7.8.04

O «caso de Pebane»: a reconstrução do mito da antropofagia. 
As alegadas práticas de antropofagia no distrito da Zambézia, na segunda metade da década de 40, tinham despertado nas autoridades administrativas coloniais o pretexto para mais uma sanha persecutória e a afirmação premente da sua missão civilizadora. Júlio Augusto Pires, Inspector Administrativo da colónia que tinha acompanhado Henrique Galvão na sua incursão à Zambézia em 1947, lavraria um memorando para a Repartição Central dos Negócios Indígenas sobre o «caso de Pebane» rematado pelas seguintes conclusões:
«Não se trata de qualquer seita organizada, mas tão sómente de vestígios ainda não eliminados de antropofagia entre os Lomué e, porventura, entre outros povos da Colónia… Os Lomués trouxeram nas suas primitivas ondas imigratórias, este costume já extinto pela intervenção dos princípios da civilização que lhes temos incutido e rigorosas sanções penais com que estes casos foram sempre punidos… Supõe-se que o triângulo Mualama–Mocubela–Mugeba e Gilé seja o foco do antropofagismo Lomué. Os casos verificados em Mocubela e mais recentemente em Mugeba onde, segundo me consta, prenderam mais de uma dúzia de suspeitos, são indícios do que afirmo. Não quero excluir outras regiões».
Em resumo, todos os «indígenas» eram, à partida, suspeitos e passíveis de cometer tão hediondo crime, como se pode depreender das palavras finais. De resto, o memorando evoca outros «casos» e «testemunhos» passados em outras latitudes da colónia, mas sempre antecedidos de um «consta» ou de um «ouvi dizer que para os lados de…». Alertada pelo memorando de Júlio Augusto Pires a Repartição Central dos Negócios Indígenas, no cumprimento de indicações expressas pelo Governador Geral, enviou uma circular confidencial a todos os governadores distritais relatando o caso de Pebane e chamando a atenção para o facto de ser absolutamente necessário mandar investigar rigorosamente qualquer indício de existência de «seitas de homens-leão». O governador da Zambézia já tinha recebido, por seu turno, instruções especiais para reabrir de imediato um rigoroso inquérito aos «casos de Pebane», nomeando para o efeito um administrativo «dos que julgasse mais competente» para instruir o processo. Urgia reconstruir o mito da selvajaria e barbárie indígenas que justificasse a premência da intervenção civilizadora.

6.8.04

Henrique Galvão entre os Antropófagos. 
A 19 de Abril de 1947 era dada notícia de casos de antropofagia no posto administrativo de Mualama, circunscrição de Pebane, distrito da Zambézia. Tinha-se apresentado naquele posto administrativo o «regedor» Ociua dando conta da morte de cinco mulheres e ferimentos noutras três, provocados por ataques de leões, conquanto os leões tivessem, desde há muito, desaparecido daquela zona da Zambézia. Das investigações conduzidas pelo Chefe de Posto, com o auxílio da referida autoridade tradicional, junto das sobreviventes dos ataques, rapidamente se constatou que os ferimentos eram provocados por objectos cortantes e não por garras de leão; que as pegadas de retirada dos «bichos» terminavam junta à porta de palhotas de «indígenas conhecidos de há muito como feiticeiros»; finalmente, que:
«Chamados os indicados [como feiticeiros], foi tal a espontaneidade das suas confissões que o Chefe de Posto, para que não houvesse alguém que suspeitasse que tais confissões haviam sido arrancadas com violências, teve o cuidado de fazer assistir aos interrogatórios vários europeus (…) Assistiu também a esses interrogatórios, o Exm.º Sr. Inspector Superior da Administração Colonial, Capitão Henrique Galvão…».
Uma feliz coincidência, ou não, fez com que Henrique Galvão — que nesse mesmo ano tinha publicado na Metrópole o «romance» Antropófagos — estivesse na zona, no âmbito das suas funções como Inspector Superior da Administração Colonial, cargo para o qual for a nomeado poucos meses antes. A Inspecção Superior dos Negócios Indígenas, a funcionar no Ministério das Colónias, que tinha sido criada por decreto-lei em 20 de Novembro de 1946, também nomeava o Capitão Henrique Galvão para a sua direcção. A sua primeira «inspecção» decorreu em Moçambique, durante quase todo o primeiro semestre de 1947.

2.8.04

O Canibalismo no imaginário colonial. 
Surpreendentemente, um dos «crimes gentílicos» que mereceu pouca atenção no Projecto Definitivo do Código Penal dos indígenas da Colónia de Moçambique de Cota Gonçalves era o da antropofagia, conquanto, no imaginário colonial, não só em Moçambique mas também nas outras colónias portuguesas em África (sobretudo em Angola), originasse uma significativa produção literária. O título mais paradigmático, um êxito editorial na Metrópole e nas colónias, foi o «romance» de Henrique Galvão, de 1947, Antropófagos, [Lisboa, Editorial Jornal de Notícias].
Cota, por seu lado, considerava a antropofagia, que ele designava de canibalismo, um fenómeno puramente psiquiátrico, sem qualquer relação com a feitiçaria ou práticas de magia:
Art. 82.º O indígena que, para praticar o canibalismo, cometer o crime de homicídio na pessoa destinada àquele fim, será imediatamente internado num manicómio para observação psiquiátrica; e se os peritos declararem que ao mesmo indígena deve ser aplicado mero tratamento penal, será ele punido com a 1.ª pena do artigo 30.º [20 a 28 anos de degredo] , podendo ser agravada a dita pena até seis anos pela comissão directiva das reclusões, além do máximo estabelecido. Se os peritos, porém, declararem que para o arguido está indicado o tratamento psiquiátrico, permanecerá o mesmo arguido no manicómio pelo tempo que for julgado conveniente à sua cura ou à segurança social».
Não tendo notícia directa de nenhum caso de antropofagia, Gonçalves Cota evocava brevemente o ocorrido no Alto Niassa onde estaria a decorrer um processo penal contra alguns feiticeiros acusados de canibalismo, embora não tenha podido, até essa altura, esclarecer da veracidade dos factos que lhe foram narrados.
Mas supostos casos de «antropofagia indígena» povoariam o imaginário colonial, servindo o arquétipo de uma África selvagem e obscura.

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