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31.8.03

Uma ciência imperial - V 
Em Portugal a dominância da Antropologia Física manteve-se quase por toda a primeira metade do século XX: mesmo as raras cadeiras de Etnologia que, posteriormente, se começaram a afirmar nos currículos das universidades — como a cadeira semestral de Etnologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra que Jorge Dias foi em 1952 convidado a reger — não escapavam a uma «mistura de raciologia com arqueologia» [João Basto Lupi (1984), A Concepção de Etnologia em António Jorge Dias, Braga]. Por outro lado, a geração de Leite de Vasconcellos não se reproduziu no tempo, isto é, no imediato não originou uma «escola» e, como acentuou Veiga de Oliveira [(1976), «Professor Jorge Dias», Revista Portuguesa de Filologia, vol. XVI, Coimbra], após o seu desaparecimento as pesquisas e os estudos etnológicos «…estavam unicamente a cargo de amadores».
Esse hiato entre a geração de Leite de Vasconcelos e a «escola» de Jorge Dias, aliado à falta de uma dimensão «prática» — que a Antropologia Física efectivamente realizava no terreiro colonial — explicam conjuntamente a subalternização da Antropologia Cultural e Social portuguesa durante a primeira metade do século XX. No mesmo período, ao invés, a Antropologia Física, nas suas diversas facetas, soube colher no terreiro colonial a legitimidade e o reconhecimento que lhe permitiram afirmar-se no campo académico a um mesmo nível das ciências exactas e experimentais, de forma a poder assumir-se como uma verdadeira ciência e não mais como um «diletantismo folclorista e arqueológico». Desse modo, a investigação de campo no terreiro colonial que fundamentou e acompanhou a emancipação da Antropologia Física portuguesa deverá ser entendida como uma etapa necessária à afirmação da identidade da nova disciplina. Assim sendo, o momento inicial de certeza de si do colonialismo português foi-o, também, da certeza em si da prática antropológica.

29.8.03

Uma ciência imperial - IV 
A crescente autonomia académica da disciplina antropológica em Portugal pode ser referenciada à sua crescente intervenção no terreiro colonial. Depois da criação da cadeira de Antropologia na Universidade de Coimbra, em 1885, a disciplina foi ganhando lugar cativo nas faculdades de Ciências e de Medicina, entregue, regra geral, à regência de médicos, uma vez que se orientavam os estudos quase que exclusivamente para a vertente antropométrica. A sua aplicabilidade nas colónias, exercida ao longo de múltiplas campanhas de investigação que, por norma, eram dirigidas no terreno pelos mesmos investigadores que regiam as cadeiras nas universidades, foi concorrendo para uma nítida elevação do estatuto da Antropologia. Depois do Museu-Laboratório Antropológico, na Universidade de Coimbra, a Universidade do Porto criou na Faculdade de Ciências o seu Museu e Laboratório Antropológico, fundado em 1914, à sombra tutelar do qual se abrigaria a Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia constituída em 1918 por António Augusto Mendes Corrêa e Américo Pires de Lima, entre outros. O nome da Sociedade trai uma divisão fundadora no campo das ciências antropológicas em Portugal: de um lado a Antropologia, entendida como o estudo do homem «físico»; do outro a Etnologia, entendida como o estudo do homem «cultural e social». Todavia, esta segunda vertente esteve praticamente ausente nas intervenções em terreiro colonial durante a primeira metade do século XX, da mesma forma que era quase que completamente omissa nos programas curriculares das cadeiras de Antropologia entretanto surgidas. A este propósito poder-nos-emos inquirir sobre o facto de a brilhante geração de Leite de Vasconcellos (com Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso e Rocha Peixoto, entre outros) não ter originado a criação e fixação de cadeiras de «Etnologia» nas universidades portuguesas, apesar da excelente produção resultante. Parte da resposta a esta questão deverá estar relacionada com a ausência de uma dimensão «prática» ou, melhor dizendo, «utilitária» nos estudos etnológicos, desde sempre subvalorizados pela sua inicial conotação com o «folclorismo» e a «cultura popular», ao invés da Antropologia da primeira metade do século XX que, sobretudo por via das suas variadas assunções antropométricas, se associou à ideia de cientificidade e rigor, e, ademais, exibia um evidente «utilitarismo».

28.8.03

Tráfico Negreiro e Comércio Lícito 
No último quartel do século XIX o modelo de exploração económica que as potências ocidentais vinham aplicando em África assente, sobretudo, no tráfico negreiro viria a alterar-se radicalmente. O desenvolvimento industrial no Ocidente começou a exigir determinadas matérias-primas tropicais, como a borracha, o algodão, o rícino, o óleo de palma e outros, e surgiu, consequentemente, um novo pólo de interesses económicos, aquilo a que consensualmente se tem designado como a transposição do «tráfico negreiro» para o «comércio lícito». Esse novo complexo de interesses económicos acarretou a ocupação e administração efectivas, em extensão, dos territórios ultramarinos e são traçadas, então, políticas coloniais, ganhando corpo os chamados modelos de administração colonial.
Portugal, por arrastamento — quando não por imposição — viu-se obrigado a acompanhar essa viragem na política expansionista europeia e o seu papel relativamente marginal, com a subalternização dos seus interesses políticos e territoriais nas conferências sobre a questão colonial — que tiveram o seu corolário na Conferência de Berlim, em 1884-1885 — deverá ser interpretado, em derradeira instância, como o resultado do anacronismo da política colonial portuguesa, que continuava a permitir e persistir no negócio da escravatura até uma data muito tardia.

27.8.03

Tráfico Negreiro e Esclavagismo Alienígena 
O fenómeno da escravatura constituiu, seguramente, o vector que mais radicalmente alterou as formações sociais africanas tradicionais. Durante algum tempo pretendeu-se que os negreiros apenas encaminharam e redimensionaram um fenómeno social que na África sub-sahariana tinha já longa tradição. Importa, contudo, estabelecer a destrinça entre o esclavagismo alienígena — também designado por «escravatura doméstica» — e a escravatura e tráfico negreiro implementados pelos europeus a partir do século XV, quando, em resultado da caça aos escravos, as sociedades africanas conheceram profundas alterações quer na direcção do despotismo, quer na adopção de um tráfico subsidiário do dos europeus. Sem negar a existência prévia de escravatura na chamada África Negra — diversos testemunhos evocam-na amiúde — é necessário acentuar que esses, então, novos desígnios das sociedades africanas eram em grande parte, quando não totalmente, o efeito e nunca a condição do aparecimento desse esclavagismo alienígena. José Capela [Escravatura. Conceitos. A Empresa do Saque, Porto] estabeleceu, nos termos que nos parecem os mais correctos, um quadro diacrítico fundamental para situar o esclavagismo alienígena em África, o qual obedeceria, de facto, a outra categorização de valores, diferentes daqueles violentamente introduzidos pelo tráfico negreiro que imediatamente acompanhou, quando não motivou, a expansão ultramarina:
«(...) a concepção e a prática de escravatura africana são algo que se distingue das concepção e prática europeias. Enquanto, na Europa, o escravo era, verdadeiramente, um semovente desprovido do controlo da sua fora de trabalho e dos meios de produção que utilizava, assim como da totalidade do produto do seu trabalho apropriado por outrem, na África era um elemento entrado em clã estranho, a grande família, ido de fora, alheio, portanto, aos laços de parentesco sobre que repousava o fundamento da comunidade. Não beneficiava dos direitos inerentes ao componente do clã, mas também não era, simplesmente, nem principalmente, um instrumento de trabalho, como tal apropriado pelo mesmo clã. Este intruso, se tinha, é certo, pelos serviços prestados, e só por isso, um valor económico, se não fazia parte da família (que era toda a comunidade clânica), o seu verdadeiro valor advinha-lhe não tanto do rendimento servil como sobretudo da sumptuária e do poder político adquiridos com o seu número».
Esta distinção, assim formalmente estabelecida, não invalida, contudo, que após a generalização do tráfico negreiro alguns sectores das sociedades africanas colaborassem, sob diversas formas, no processo esclavagista. Papel decisivo no alargamento do tráfico negreiro foi o desempenhado pelos intermediários locais, os célebres lançados, tangomaos e pumbeiros, indivíduos angariadores de escravos, ou, ainda, o envolvimento activo, a partir do século XIX, de entidades étnicas, como os Chikunda (na realidade uma etnia compósita) na África Central e Oriental, etnias «courtière» especializadas na angariação de escravos e seu encaminhamento para o mercado. Após o desmembramento do sistema dos Prazos da Coroa do vale do Zambeze no primeiro quartel do século XIX (e antes que se estabelecessem as companhias majestáticas) os exércitos de escravos chikunda que serviam os diversos prazeros (arrendatários), porque não participavam na produção agrícola, encontraram na arregimentação de escravos a principal fonte de subsistência [a este propósito, ver o excelente texto de Allen F. Isaacman (1972), «The origin, formation and early history of the Chikunda of south central Africa», The Journal of African History, XIII (3), Londres].

26.8.03

Uma ciência imperial - III 
O apelo colonial deve ser entendido — pelo menos do ponto de vista científico — como uma «crise de crescimento» inerente ao próprio desenvolvimento da Antropologia portuguesa e é inegável que a autonomização da Antropologia académica em Portugal resultou desse apelo. Em vez de ser julgada como um anátema da Antropologia portuguesa, a situação colonial deve ser entendida como o processo catalisador que proporcionou um ímpar salto qualitativo aos estudos antropológicos em Portugal: a sua aplicabilidade e a sua autonomização científica e académica.
Foi na sua vertente antropométrica que — acompanhando um movimento geral e comum a toda a Europa da segunda metade do século XIX — a Antropologia portuguesa começou por testar a sua aplicabilidade. Talvez que sensibilizado pela realização em Lisboa, em 1880, do «IX Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-Histórica», o Ministério da Marinha e Colónias dirigiu, por toda a década de 80, instruções ao pessoal sanitário e administrativo das colónias determinando a observação e relato de diversas características físicas dos «indígenas», como a circular de 1885 que solicitava a colecta de crânios humanos e seu posterior envio para a metrópole, onde deveriam ser classificados e estudados. Dever-se-á ter presente que, nesse mesmo ano, tinha sido criada na Universidade de Coimbra a primeira cadeira de Antropologia, entregue à regência do médico — e futuro Presidente da República — Bernardino Machado. Mesmo alguns dos autores que na viragem do século acompanhariam Leite de Vasconcellos no lançamento dos estudos etnográficos e etnológicos em Portugal tiveram necessidade, em diversos momentos, de se reportarem a esses aspectos «práticos» da Antropologia Física das colónias: é o caso de Francisco Adolfo Coelho que numa obra de 1893 [Os Povos Extra-Europeus e em especial os negros de África ante a Civilização Europeia] manifesta a sua adesão aos princípios de um «evolucionismo positivista»; ou de Teófilo Braga que em artigo de 1908 [«O que são as raças sociológicas», Trabalhos da Academia de Sciências, 1ª série, tomo I] estabelece uma distinção radical entre «raças biológicas» e «raças sociológicas». Poder-se-ia, ainda, evocar a prolixa obra de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, ponteada de referências antropométricas, para comprovar essa crescente aplicabilidade das ciências antropológicas portuguesas no terreiro colonial. Tal tendência acentuar-se-ia, nos anos que se seguiram à instauração do regime republicano, com os levantamentos de Pires de Lima no Norte de Moçambique. Américo Pires de Lima era médico do Corpo Expedicionário Português que actuava no Norte de Moçambique contra os alemães do Tanganhica durante a guerra de 1914-1918. Aproveitando a sua estadia na colónia, entre 1916 e 1918, e fazendo jus à sua «especialidade» em Antropologia, procedeu a inúmeros levantamentos antropométricos entre as etnias do Norte de Moçambique. O relato da sua experiência no Norte de Moçambique pode ser encontrado em Na Costa d’África. Memórias de um médico expedicionário a Moçambique, (1933). O principal estudo resultante da sua actividade antropométrica na colónia data, contudo, de 1918: «Contribuição para o estudo antropológico dos indígenas de Moçambique», [Anais Científicos da Faculdade de Medicina do Porto, vol. IV, (3)]. Terá sido, porventura, o primeiro antropólogo a fazer trabalho de campo entre os macondes moçambicanos. Mas o maior envolvimento sobreviria já na vigência do Estado Novo [por força do Decreto-Lei n.º 34478, de 3 de Abril de 1935], com as dezenas de «missões antropológicas» que o Ministério das Colónias patrocinaria entre 1935 e 1955 em Angola e na Guiné (por Alfredo de Athayde), em Timor (por Mendes Corrêa) e, sobretudo, em Moçambique (por Santos Júnior).

22.8.03

Uma ciência imperial - II 
Evocando os desaires coloniais de finais de Oitocentos (Conferência de Berlim e Ultimato inglês), há quem pretenda ver neste encadeado de factos históricos a origem da falta de uma tradição colonial da antropologia portuguesa. Parece-nos, todavia, uma asserção demasiado apressada até porque, desde 1875, a Sociedade de Geografia de Lisboa vinha mantendo acesa a chama do imperialismo colonial português. Isto é, a par desse ensimesmamento nacionalista e mau-grado os desaires de 1885 e 1890, a corrente colonialista acabou por fazer impor a sua vontade. A esse propósito, a própria evolução do pensamento de Oliveira Martins quanto à questão colonial é muito elucidativa. Em O Brasil e as Colónias Portuguesas [1ª edição, 1880], reflexão aprofundada sobre o conjunto das colónias portuguesas e seu lugar na política nacional, Oliveira Martins revela um certo «cepticismo radical» [a expressão é de Valentim Alexandre, 1996, «Questão nacional e questão colonial em Oliveira Martins», Análise Social, vol. 135] quanto à viabilidade do império e aos benefícios que daí adviriam para Portugal, advogando, até, a alienação imediasta de parte das possessões portuguesas: «… alienar mais ou menos claramente, além do Oriente [Timor, Macau e Índia Portuguesa], Mocambique, por enfeudações a companhias; abandonar protectorados irrisórios e domínios apenas nominais, e congregar as forças de uma política sábia e sistemática na região de Angola …». Da leitura do texto de 1880 ressaltam, ainda, duas ideias: as colónias africanas seriam permanentemente deficitárias e a sua manutenção empobrecia Portugal; a conservação das colónias não era necessária para a preservação da identidade nacional. Mas esse cometimento quase anticolonialista desvanecer-se-ia completamente em finais da década de 80 e começos da seguinte. Após a sua adesão ao Partido Progressista, Oliveira Martrins enfeuda-se, em 1886, no apoio à política governamental para as colónias e na sequência da crise do Ultimato deixa-se contaminar pela exaltação nacionalista: o «património colonial» seria indispensável ao bem-estar de Portugal e a questão colonial tinha-se tornado «vital para o país» [Oliveira Martins, 1957 (1.ª ed. 1890), Política e História; 1891, Portugal em África. A questão colonial. O conflito Anglo-Portuguez]. No computo final do último quartel do século passado foram as teses imperialistas, como a História o veio a demonstrar, que impuseram a sua vontade: os centuriões (António Enes, Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, Teixeira Pinto e outros) avançaram para a ocupação efectiva sustentada em «campanhas de pacificação». A última década do século XIX foi, manifestamente, um tempo de empenho colonial e se a antropologia portuguesa, então emergente, voltava costas ao terreiro colonial não era por falta de «oportunidade», mas sim por falta de «utilidade».

21.8.03

Uma ciência imperial - I 
A afirmação institucional da antropologia portuguesa, ainda que de uma forma titubeante, remonta à segunda metade do século XIX. É preciso lembrar, mesmo que sumariamente, que em Portugal, como na maior parte dos outros países europeus, o desenvolvimento dos estudos etnográficos, o afã de recolhas de folclore e o interesse pelos «estudos populares», tanto no campo académico como no domínio literário, estavam manifestamente associados à busca de uma identidade nacional. Nomes como os de Oliveira Martins, Consiglieri Pedroso, Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Rocha Peixoto, Alberto Sampaio e Leite de Vasconcellos, evocam a figura de brilhantes cientistas sociais em permanente contacto com as escolas e teorias que então se desenvolviam em Inglaterra, em França e na Alemanha: as obras de Adolfo Coelho e Oliveira Martins demonstram, pela evocações bibliográficas nelas contidas, uma actualização aos debates científicos da altura, a colecção de contos de Consiglieri Pedroso começou por ser publicada em Inglaterra em 1882 (só viria ser editada em língua portuguesa em 1910) e Leite de Vasconcellos concluíu o seu doutoramento na Sorbonne em 1901. Como já alguém recordou [João de Pina Cabral, 1991, Os Contextos da Antropologia], «o anacronismo académico, que foi uma característica tão visível na nossa área disciplinar entre as décadas de 1930 e de 1970, não era, de forma alguma, aparente na segunda metade do século passado». Essa geração procurava uma resposta para a questão básica que tem atravessado a cultura portuguesa dos últimos cento e cinquenta anos, «descobrir quem somos e o que somos como portugueses» [Eduardo Lourenço, 1978, O Labirinto da Saudade], interrogação que se tornou amarguradamente pertinente na última década de Oitocentos, com o Ultimato inglês a coroar uma profunda e generalizada crise económica e política. Primeiro, a Conferência de Berlim, em 1884-85, depois o Ultimato, em 1890, cercearam decisivamente as pretensões de Portugal em assumir-se como uma grande potência colonial. As elites intelectuais, desiludidas com o destino imperial de Portugal, passaram a buscar na história e na cultura popular uma grandeza nacional perdida, desencadeando uma intensa produção ideológica em torno da questão da nacionalidade, suas raízes históricas, condições e circunstâncias da existência da nação portuguesa.

19.8.03

Uma ideia de Colonialismo 
Uma definição «clássica», mesmo algo tautológica, de colonialismo apresenta-nos o fenómeno como «a relationship created when one nation establishes and maintains political domination over a geographically external political unit inhabited by people of any race and at any stage of cultural development» [Hans Kohn, 1958, «Reflections on colonialism», in Robert Strausz-Hupé & Harry W. Hazard (eds.), The Idea of Colonialism, London]. A mais completa definição de situação colonial continua a ser, contudo, a primeiramente aventada por Georges Balandier [1951, «The Colonial Situation: a theorical approach», in Pierre L. van der Berghe (ed.), Africa: Social Problems of Change and Conflit, San Francisco] já lá vão mais de 50 anos, e que, posteriormente, seria precisada por via dos seguintes operadores:
«... a dominação imposta por uma minoria estrangeira, racial e culturalmente diferente, apelando a uma superioridade racial (ou étnica) e cultural dogmaticamente afirmadas, sobre uma maioria autóctone materialmente inferior; o confrontar de civilizações heterogéneas: uma civilização industrializada, com uma economia poderosa, com um ritmo rápido e de origem cristã impondo-se a civilizações sem técnicas complexas, de economia retardada, com um ritmo lento e radicalmente não-cristãs; o antagonismo nas relações estabelecidas entre as duas sociedades que se justifica pela instrumentação a que é condenada a sociedade dominada; a necessidade, para manter a dominação, em recorrer não apenas à força mas também a um conjunto de pseudo-justificações e de comportamentos estereotipados ...»
Mais do que pelos seus limites, a definição de situação colonial acima transcrita [Georges Balandier, 1955, Sociologie Actuelle de l'Afrique Noire, Paris] vale pelas suas implicações, isto é, a possibilidade de considerar o colonialismo como uma totalidade e não um conjunto de processos independentes, resultantes de experiências sociais únicas e exclusivas. Como escreveu na altura Balandier, «nous avons préféré, à la faveur des “vues” particulières prises par chacun des spécialistes, saisir la situation coloniale dans son ensemble et entant que système». Mais, este conceito operativo desvalida a questão de se saber se houve bons ou maus colonialismos, sendo certo, contudo, que não se poderão negar as especificidades de cada situação colonial. De resto, mais recentemente, George Stocking Jr. [1991, Colonial Situations], a propósito da emrgência do pensamento antropológico em contexto colonial, chamou a atenção para a necessidade de entender o fenómeno nas suas diversas assunções objectivas no terreno: «...a pluralization of the "colonial situation"... ».

18.8.03

Capitais, Investimentos e Exploração 
Está por fazer um estudo global sobre a Companhia de Moçambique, envolvendo os seus aspectos históricos, políticos, económicos e sociais, pelo que a partir dos muitos estudos parcelares até agora concluídos poderemos obter, apenas, uma imagem incompleta do que foi aquela companhia majestática. Por exemplo, uma das questões ainda não cabalmente resolvida é esta: o modelo económico de companhia majestática fornecia proventos consideráveis aos seus empreendedores? Ou ainda esta outra questão: as companhias majestáticas reinvestiram nos territórios concessionados, concorrendo para o seu desenvolvimento, como se obrigavam na letra das cartas de concessão? Por outras palavras, trata-se de procurar saber qual a rentabilidade do modelo, levando em atenção, igualmente, os objectivos políticos a que se propunham. A julgar pela perdurabilidade da Companhia de Moçambique tudo levaria a crer estar-se perante um modelo económico relativamente rentável. Contudo, algumas fontes acessórias parecem questionar essa rentabilidade. Com a devida vénia, reproduzimos de seguida alguns excertos retirados da página do Banco Standard Totta de Moçambique (http://www.bstm.co.mz/historia.htm) em que se narram as tentativas, pouco conseguidas, de estabelecimento nos territórios da Companhia de Moçambique:
«Em 1895 tornou-se possível a ligação entre as cidades da Beira e Chimoio por via-férrea, dando mais alento às possibilidades de negócio especialmente com a Rodésia. Mas, devido ao mau clima da Beira e a um acordo implícito entre o Bank of Africa na Beira (havia-se instalado na Beira em 1890) e o Standard Bank em Umtali, em que ambos se comprometeram a não se imporem no território um do outro, o Standard Bank não se apressou a estabelecer-se naquela região.
A Beira conhece neste período um desenvolvimento gradual motivado pelo crescimento das transacções efectuadas por via-férrea e pelo avançar da linha-férrea em direcção ao interior. É nesta perspectiva que o Bank of Africa resolve, inesperadamente, estabelecer-se em Umtali, violando o acordo anteriormente firmado com o Standard Bank. O Standard sentiu-se obrigado a revidar-se enviando logo de seguida C.J. Syme para a Beira com o propósito de abrir uma Agência.
As pretensões de J. C. Syme tornam-se, numa primeira abordagem, infrutíferas pois o Governador Machado, que anteriormente havia assegurado certas concessões ao Bank of Africa, com a justificação de que havia atribuído direitos bancários exclusivos na Beira ao Bank of Africa, não autoriza a abertura de uma Agência do Standard Bank. Após delicadas conversações, o Governador reconsiderou a sua posição inicial, autorizando a abertura da agência do Standard, o que veio a acontecer no dia 28 de Setembro de 1896. No ano seguinte, a Agência da Beira instala-se num novo edifício com três salas, no rés-do-chão da sede dos Caminhos de Ferro da Beira.
Devido a prolongada depressão nos fins da década de 1890, a política do Standard foi necessariamente restrita. Apesar das dificuldades predominantes, o Banco esperava sobreviver à depressão sem prejuízo, visto que ambas as Agências na costa se haviam tornado indispensáveis para as suas operações.
Em 1901 o Standard adquiriu o terreno defronte à Praça Luís Ignácio, na Beira, aos senhores Fabre et Fils, com a intenção de construir a sua própria sede, deixando de lado aquela que até então era sua prática: o aluguer de espaço. O novo edifício, acabado de construir em 1902, era constituído por dois andares e considerado o edifício mais vistoso da cidade, oferecendo acomodação suficiente para as necessidades da Agência por longos anos.
[...]
Ao dobrar o século, os interesses na exploração do ouro aumentaram significativamente mas não o suficiente para, a par do negócio das cantinas da cidade, dar um novo impulso ao desenvolvimento da actividade bancária naquela região. Daí que em 1901 o Governador de Manica e a Companhia de Moçambique manifestam o seu interesse em ter uma agência do Standard Bank em Macequece, concedendo instalações grátis no prédio onde estava instalado o Governo local. Embora relutante, o Standard Bank aceita o convite mas na condição de se retirar quando quisesse. No dia 2 de Junho de 1902, o então Gerente da Agência da Beira, senhor J.J. Toogood, inaugura a agência de Macequece, passando tempos depois o testemunho para as mãos do senhor J.T. Gregson. Dois anos após a sua abertura, mais precisamente no dia 31 de Outubro de 1903, a Agência de Macequece fecha as portas, sendo os poucos recursos que a região oferecia e o estado precário das instalações os principais motivos para que tal acontecesse. Em 1906, como consequência do vazio deixado pelo Standard Bank naquela região, o Bank of Africa inaugura as suas instalações, o que vai motivar a transferência da conta da Companhia de Moçambique na Agência do Standard Bank na Beira para o Bank of Africa em Macequece. [...]
O interesse do Standard Bank no potencial de Vila Fontes despertou quando, em 1911, se soube que foi proposto a extensão da linha-férrea de Port Heraald para o Zambeze, em Vila Fontes, com o início das obras previsto para 1912. A Companhia de Moçambique tencionava transferir os funcionários públicos de Sena para Vila Fontes, passando a ser esse povoado o local apropriado para a existência de uma agência bancária. A Companhia havia de trabalhar com o banco que se estabelecesse primeiro. Porém, para que qualquer banco ali instalado fosse viável, tinha também de, necessariamente, assegurar a conta da Sena Sugar Factory Ltd. Essa companhia monopolizava tanto o negócio como também as transacções bancárias na região. Esperava-se que, com a presença de um Banco, novos investidores pudessem ser atraídos para a região. É no seguimento deste processo que à partir de 1 de Março de 1912 o Standard Bank arrenda, no talhão n.º 98 em Vila Fontes, umas instalações constituídas por duas salas espaçosas e uma varanda, sendo o prédio de madeira e zinco e pertencente a Companhia de Moçambique. No dia 18 de Março do mesmo ano a Agência abriu as portas ao público. Embora o Banco tenha adquirido o talhão n.º 74 em Vila Fontes para a construção de um prédio pré-fabricado, o plano não chegou a ser levado avante. A Agência trabalhava com alguma dificuldade que se saldava em enormes prejuízos e, a título de exemplo, até final de 1914 só tinha 39 contas correntes das quais 15 deveriam fechar logo que terminasse a construção da linha-férrea, mas precisamente em 1915. Como consequência, o Banco é obrigado a encerrar as suas instalações em Vila Fontes a 22 de Janeiro de 1915».
Do que acima se transcreve algumas conclusões se podem retirar, mesmo que extemporâneas e passíveis de serem contraditas por outras fontes. Em primeiro lugar torna-se evidente que localmente existia pouca liquidez de capitais, isto é, não ocorriam actividades económicas significativas a jusante do modelo de exploração económica da Companhia. Em boa verdade, e todas as outras fontes o confirmam, tratava-se de um sistema que combinava o extractivismo monopolista com a mais primitiva exploração da mão-de-obra indígena. Em segundo lugar, torna-se de igual modo evidente que os resultados de exploração da Companhia de Moçambique eram encaminhados para o exterior, com pouco reinvestimento nos territórios concessionados. A durabilidade da Companhia de Moçambique (1888-1941), de todo o modo, parece indicar que o modelo era suficientemente rentável para os seus empreendedores, tanto mais que, ao arrepio do estipulado na Carta de concessão, nunca se sentiram compelidos a reinvestir nos territórios concessionados ou a cumprir as «obrigações sociais», como sejam, entre muitas outras, a construção de escolas e estruturas hospitalares.

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