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29.9.03

Ideias sobre a guerra colonial: extremismo e candura. 
No jornal Público de hoje, Mário Tomé, o Major, esse mesmo, publica um texto de opinião sob o título «Trocando umas ideias sobre a guerra colonial». Ao que parece, motivado por notícia da jornalista Ana Sá Lopes a propósito da estreia do filme de José Carlos Oliveira «Preto e Branco» publicada nas páginas daquele diário. Enquadrando o texto da jornalista, teriam sido recolhidas as opiniões do «historiador António Costa Pinto e do ensaísta, professor e ex-comando Rui de Azevedo Teixeira».Quanto a este último, Mário Tomé dedica-lhe não mais que um singelo parágrafo, contrapondo aos aspectos positivos [desenvolvimento económico e social muito acentuado] que Azevedo Teixeira põe em realce na sua declaração sobre a guerra colonial, o raciocínio segundo o qual tais «benefícios colaterais … foram parte do tremendo esforço de guerra, procurando garantir as melhores condições morais e materiais para o êxito das operações. Preparavam o lançamento do napalm, os massacres, as torturas e assassinatos da PIDE, mas também tropas de ocupação, as deportações, os campos de concentração a que os nossos brandos costumes chamavam “aldeamentos”». Importa refrear este esquematismo maniqueísta de Mário Tomé, da mesma forma que não se podem deixar passar em claro todas e quaisquer reassunções laudatórias da guerra colonial. Mas vamos por partes.
Sim, é verdade, já aqui o escrevemos por diversas vezes, o colonialismo português estava investido do mesmo carácter agonístico, do mais despudorado racismo, da pior das iniquidades económicas e sociais, tal e qual os outros colonialismos: não existiram bons e maus colonialismos. Para além das «aparências exteriores» (diversidade nas disposições legislativas, fundamentalmente) a essência era a mesma. E, neste caso, se aqui o afirmamos não o fazemos em nome de nenhum preceito ideológico ou político mas tão-somente apoiados em dados muito objectivos: mais de 20 anos de consulta a fontes primárias do próprio regime colonial não se compadecem com lucubrações mítico-ideológicas. E é precisamente evocando esse respaldo que afirmamos a nossa discórdia com o axioma simplista que Mário Tomé expõe nas páginas do «Público». O desenvolvimento económico das possessões coloniais portuguesas inicia-se durante a 2.ª Guerra Mundial, quando as mercadorias tropicais (algodão, café, óleo de rícino, copra, sisal, etc, etc) das outras potências coloniais deixaram de poder circular livremente em direcção à Europa. Portugal, beneficiando da apregoada neutralidade, vislumbrou de imediato uma fantástica oportunidade de negócio. São dessa altura as Juntas de Comércio do Café, em Angola, do Algodão, em Moçambique, o reforço da legislação do trabalho compelido e a disposição legislativa das culturas obrigatórias, enfim, todo um conjunto de medidas capazes de transformar as possessões coloniais portuguesas de uma empresa deficitária (como de facto o era) num empreendimento rentável (como viria a suceder, antes da guerra colonial). Nos anos da 2.ª Guerra Angola triplicou a produção e a exportação de café e o mesmo sucedeu em Moçambique com o algodão e, alguns anos mais tarde, com o sisal. Até ao advento das guerras coloniais nas três frentes (Angola, Moçambique e Guiné) o regime procede a uma reavaliação de todo o projecto colonial, empreendendo uma verdadeira reocupação, levantando recursos económicos e investindo, realmente, no desenvolvimento da economia colonial. São dessa altura, já entrada a década de 50, os planos quinquenais integrados, as missões científicas, a regulamentação das actividades económicas. Era, de todo o modo, um desenvolvimento divorciado da realidade social, ainda assente na exploração primitiva da mão-de-obra africana. O que as guerras coloniais trouxeram de novo a este modelo económico foi a junção de uma «preocupação» social ou político-social, como se dizia na altura. A passagem de Adriano Moreira pela chefia do Ministério do Ultramar foi, a todos os títulos, decisiva para o surgimento de um reformismo esclarecido, mesmo se, como hoje o sabemos, já estivesse deslocado no tempo. Em resumo, o desenvolvimento económico das colónias portuguesas não servia exclusivamente o esforço da guerra suja, como pretende o Major Tomé, sendo certo, todavia, que com o advento da guerra o regime se viu obrigado a subir o investimento nas colónias (e não nos estamos a referir aos custos directos da guerra), fosse ao nível das comunicações (rede viária, estruturas aeroportuárias e portuárias), fosse ao nível das facilidades logísticas (canais de abastecimento, indústrias transformadoras).
Mas são as declarações do historiador António Costa Pinto que mereceram uma atenção maior por parte de Mário Tomé. Na sua candura de recém-chegado a estas questões coloniais, o meu amigo Costa Pinto apresta-se a perfilhar uma ideia que tem vindo a fazer escol entre nós nos últimos anos, segundo a qual, em síntese, «a Guiné estava perdida, Angola praticamente ganha e Moçambique num impasse». Adicionalmente, Costa Pinto subscreve a ideia de que o exército português poderia ter continuado a resistir em Angola e Moçambique se a conjuntura nacional (o 25 de Abril) e internacional (o fim da guerra-fria) não se alterasse como se alterou. Mas Costa Pinto como historiador (brilhante) que é deveria saber que a História não é feita com «ses». E aproveitando a abertura do flanco, Mário Tomé investe fortemente contra essa argumentação, apregoando a irreversível derrota militar das tropas portuguesas. Porventura, mas apenas porventura, a derrota militar não pudesse deixar de acontecer (já que a derrota política estava anunciada à partida) mas afirmá-la assim tão taxativamente é entrar de novo na História dos «ses». Querem ver como a realidade subverte todas as ficções históricas? Em Março de 1974 as forças anticoloniais angolanas estavam completamente desbaratadas, ao ponto de nesse mesmo ano, desde Janeiro, não ter ocorrido qualquer confronto directo, mas apenas esparso duelo de artilharia na fronteira Leste. Mas na Guiné as forças do PAIGC cercavam Bissau, bombardeavam a messe de oficiais e impediam as operações aéreas da FAP. Menos de trinta anos depois, a situação é esta: as forças armadas angolanas são o 2º exército mais poderoso da África subsahariana (eventualmente ultrapassado, apenas, pelo da África do Sul) e a espantosa força militar dos nacionalistas guineenses transformou-se num exército virtual, atravessado por facções étnicas, mal equipado e ineficaz. Outra atenção merece a afirmação de Costa Pinto de que a descolonização «não se deveu à pressão militar dos guerrilheiros», mas sim ao «colapso do sistema político metropolitano», ideia que merece forte contestação de Mário Tomé: «o sistema político entra em colapso no 25 de Abril exactamente por querer continuar uma guerra de que precisava para se manter, mas para a qual já não tinha unhas». Se não se tratasse de uma história dramática, apetecer-nos-ia dizer «ainda bem que havia colónias … e guerrilheiros nacionalistas … e guerra colonial … e tudo o resto». Que seria de nós, sem a «pressão dos guerrilheiros», sem «a derrota militar nas colónias»? Ficaríamos, para todo o sempre, entregues a uma ditadura fascista?? No seu afã, quase obsessivo, em afirmar a derrota militar, Mário Tomé ignora, ou faz por ignorar, a luta política na metrópole, os dados objectivos de uma oposição política cada vez mais assertiva, como o demonstrou a campanha delgadista de 1958, ou, quinze anos depois, o 3.º Congresso da Oposição Democrática em Aveiro (Abril de 1973).
Talvez tenha chegado o tempo de uma investigação sobre o fenómeno colonial, incluindo a guerra colonial, menos dependente de leituras político-ideológicas e liberta da falsa candura dos lugares-comuns.

28.9.03

Codificação dos «usos e costumes indígenas» - 5: o tempo dos centuriões. 
As campanhas militares de «pacificação» que acompanharam a ocupação efectiva imposta pelos ditames da Conferência de Berlim (1884-1885) foram indelevelmente marcadas por um novo pensamento colonial emanado do que já foi designado por «escola de António Enes». Ganha corpo a resistência obstinada aos princípios constitucionais liberais que, paulatinamente, tinham vindo a atribuir direitos políticos aos africanos, agora não pelo reconhecimento da discriminação efectiva dos agentes da colonização que no terreno os impediam, sempre que podiam, de assumirem os seus direitos de cidadania portuguesa, mas sim apontando a incompreensão, por parte desses mesmos africanos, dos seus direitos políticos, atendendo ao «estado de selvajaria e barbárie» em que subsistiam. António Enes chega a afirmar que a assimilação é o «vício fundamental da nossa legislação ultramarina» [António José Enes (1893), Moçambique. Relatório apresentado ao Governo de Sua Majestade] e Mousinho de Albuquerque, que se lhe seguiu no cargo de Alto-Comissário Régio da colónia, precisava: «Não passa repentinamente uma raça (tão inferior como a negra) do estado de escravatura ao pleno uso de todos os seus direitos e regalias de cidadão livre. Carece, por isso, de passar por um estado intermédio – o do servilismo –, embora muito temperado pelo estado de civilização dos europeus que desempenham o papel de dominantes», [Joaquim Mousinho de Albuquerque (1899), Moçambique 1896-1898].
Houve quem caracterizasse esta fase da política indígena dos centuriões de finais do século XIX de «assimilação tendencial», por oposição à «assimilação uniformadora» instituída por Sá da Bandeira e seus imediatos sucessores [Joaquim Silva Cunha (1951), «O sistema português de política indígena no direito positivo desde 1820 à última revisão da Constituição», em Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa]. O adjectivo «tendencial» diz quase tudo sobre a natureza dessa assimilação: um objectivo diáfano e longínquo, potencialmente intermitente e pouco consistente, a atribuir condicionalmente se um conjunto de circunstâncias, mal ou nunca definidas, se viessem a concretizar. Marnoco e Sousa, o último ministro das colónias da Monarquia, confessaria candidamente: «É desejável que os indígenas adquiram o desenvolvimento social necessário pra que não haja distinção alguma entre eles e os colonos quanto aos direitos políticos. Isto, porém, constitui um ideal que só depois de muito tempo se pode realizar», [António José Ferreira Marnoco e Sousa (1905), Administração Colonial].

24.9.03

Codificação dos «usos e costumes indígenas» - 4: divisão e contemporização. 
Em 1885 Joaquim d’Almeida Cunha fez publicar pela Imprensa Nacional de Moçambique a obra Estudo Acerca dos Usos e Costumes dos Banianes, Bathiás, Parses, Mouros, Gentios e Indígenas. O subtítulo do livro, como já aqui aludimos, diz tudo sobre os objectivos que se propunha atingir: «para cumprimento do que dispõe o artigo 8.º, §1.º do decreto de 18 de Novembro de 1869». Avisado que estava dos insucessos que o precederam, estabeleceu uma nova metodologia: formulou um questionário circunstancialmente etnográfico e remeteu-o «a differentes pessoas, de nós conhecidas, umas por valiosas informações que já nos haviam dado com referencia á materia sujeita, outras como funccionarios zelozos, que não hesitariam em coadjuvar-nos sem olhar aos incommodos que d’ahi lhes viessem». Sendo Secretário-Geral na sede do governo, Almeida Cunha beneficiou, por força do poder desse lugar executivo, da colaboração de elementos activos da administração colonial: 5 governadores distritais, 4 comandantes militares, 1 director de alfândega. Apenas Romualdo de Raphael Patrício, professor primário em Quelimane, e Guilherme Hermenegildo Ezequiel da Silva, com idêntica função em Chiloane, se situavam fora desse círculo de «funcionários zelosos» e poderiam, pela natureza do seu exercício, assegurar informações mais próximas da realidade dos povos contactados. Se a tudo isto juntarmos o tempo que mediou entre o envio do questionário — Outubro de 1883 — e a data de publicação do Estudo — Janeiro de 1885 — facilmente se poderá aquilatar da profundidade e validade dos dados recolhidos. Estabeleceu, de toda a forma, um primeiro quadro comparativo do direito consuetudinário de alguns, poucos, grupos étnicos de Moçambique: macua, maconde, swahili, bitonga, tsonga, maganja, sena, wanhai e pouco mais. E mesmo assim assinale-se um enorme desiquilíbrio na quantidade de dados facultados sobre os bitonga — sobretudo pela memória dos vários e sucessivos «Códigos de Milandos Inhambenses» — e, por exemplo, os esparsos dados adiantados sobre os macondes.
Não nos sendo possível avaliar da aplicabilidade objectiva, no terreno, do Estudo de Almeida Cunha, pode-se constatar que no ano seguinte, sendo já Governador-Geral Augusto de Castilho, publica-se um diploma apelando afincadamente à transigência com os «uzos e costumes dos nativos». Desprovido de qualquer parte dispositiva, o diploma limita-se a aconselhar os governadores de distrito e pessoal subalterno à observância da máxima complacência com os «indígenas», de forma a evitar resistências ou «paixões impetuosas e selvagens». Não tendo chegado ainda o tempo da ocupação efectiva e com um débil dispositivo militar no terreno, à administração colonial portuguesa em Moçambique convinha essa complacência benevolente, a única via possível capaz de levar as populações colonizadas «ao caminho da submissão e obediência, da ordem e do dever, por meio de uma tutela salutar, exercida por autoridades locais que, pela sua prudência e justo critério, saibam tirar todo o partido das simpattias que temos sabido inspirar-lhes e do prestigio do nome portuguez nos sertões africanos» [Portaria Provincial n.º 362, de 6 de Julho de 1886]. O «Código dos Milandos Inhambenses» de 1889, a que já fizemos referência em anteriores posts, insere-se já nesse esforço de contemporização que antecedeu os confrontos da ocupação efectiva protagonizada, na última década de Oitocentos, pelos geração dos centuriões, Mouzinho de Albuquerque e António Enes, entre outros.

23.9.03

Codificação dos «usos e costumes indígenas» - 3: incúria e anacronismo. 
Acreditando que no pressuposto de que a justiça nada mais seria do que uma aplicação rigorosa do direito e de que este, por sua vez, deveria ser uma resultante natural da «índole» dos povos, das suas próprias tradições, vida social, economia e grau de civilização — princípio positivista imanente às grandes reformas jurídicas do século XIX — o decreto de 1869 a que temos vindo a fazer referência em posts anteriores determinava que os governos coloniais procedessem, de imediato, «à codificação dos usos e costumes indígenas». Não apenas neste domínio, mas em quase todos os outros, é reconhecido o manifesto desfasamento entre as disposições emanadas pela Metrópole e a sua regulamentação e aplicação nas colónias portuguesas. A manifestação mais evidente desse desfasamento foi a publicação, em 1885, de um estudo acerca dos «usos e costumes» [Joaquim d’Almeida Cunha (1885), Estudo Acerca dos Usos e Costumes dos Banianes, Bathiás, Parses, Mouros, Gentios e Indígenas] onde se reconhece, em subtítulo, que era «para cumprimento do que dispõe o artigo 8.º, §1.º do decreto de 18 de Novembro de 1869». Joaquim d’Almeida Cunha, o mentor do «estudo», era à época Secretário-Geral do governo-geral da colónia e fora incumbido de tal tarefa por Portaria de 21 de Setembro de 1883. Feitas as contas, teriam passado 14 anos desde a disposição legislativa de 1869 e a sua regulamentação local, em grande parte justificáveis pela incúria, desleixo e desmotivação da administração local, como se comprova pelas mal sucedidas tentativas em levar por diante em Moçambique o determinado no decreto de 1869. Após a sua publicação em Moçambique, o conselho governativo por sua Portaria n.º 73, de 21 de Abril de 1870, «ha por conveniente nomear uma commissão composta dos cidadãos João da Costa Soares, José Vicente da Gama e João da Silva Carrão (…) para colligir e codificar os uzos e costumes» da colónia. Nada, mesmo nada, na letra da lei nos informa sobre as qualificações ou habilitações dos citados cidadãos para levarem a bom termo a tarefa para a qual acabavam de ser nomeados mas, de todo o modo, dali não proveio qualquer realização. João Andrade Corvo, ministro do Reino, fez então promulgar uma portaria régia recomendando expressamente urgência na observância do decreto de 1869 e indicando, de forma muito genérica — e sempre enquadrada pelo aviso de «tendo muito em consideração attender á situação economica actual da provincia, a qual exige muita parcimonia nas despezas» —, os procedimentos institucionais a tomar para «colligir um codigo dos costumes do paiz para se dar regulamento ás capitanias móres em harmonia com esses costumes». Tão constrangido deve ter ficado o juiz-conselheiro pela «parcimónia nas despesas» que, nesse particular, do seu trabalho nada resultou, uma vez mais. A nova tentativa se assiste em 1878, protagonizada agora pelo governador-geral Francisco Maria da Cunha:
«Tendo o decreto de 18 de Novembro de 1869 mandado executar, nas provincias ultramarinas, o codigo civil approvado pela carta de lei de 1 de julho de 1867 (…) hei por conveniente em cada uma das sédes dos governos de districto e do comando militar, nomear uma commmissão, composta dos vogaes que forem opportunamente indicados, os quaes, aggregando a si os individuos que julgarem competentes, procederão, no mais curto espaço de tempo possivel, à codificação dos uzos e costumes…».
Como seria de supor, nem os «vogais oportunamente indicados», nem os «competentes» agregados fizeram trabalho algum e a única notícia que até nós chegou, relatada por Almeida Cunha, é a de que o presidente da única comissão distrital que realmente funcionou, a do distrito de Moçambique, ter mencionado no seu relatório não julgar necessária a codificação dos usos e costumes por já se acharem codificados na Índia os usos e costumes dos banianes, bathiás, parses, mouros e gentios e «conformarem-se os póvos indigenas com as nossas leis». De facto, as disposições liberais eram letra-morta nas colónias.
O Estudo de Joaquim d’Almeida Cunha, de 1885, foi, portanto, a primeira realização objectiva em Moçambique na observância do disposto no supracitado decreto de 1869.

22.9.03

Codificação dos «usos e costumes indígenas» - 2: o «Código dos Milandos Inhambenses». 
Em Moçambique a contemporização com os «usos e costumes indígenas» e as tentativas que lhe estavam associadas de regulamentação de um direito colonial provêm de meados do século XIX. O caso mais paradigmático é o denominado «Código dos Milandos» de Inhambane. Não se tratava, em boa verdade, da primeira regulamentação de «usos e costumes indígenas» em Moçambique, mas taõ-somente aquela que mais curso obteve. Em 12 de Maio de 1852 o Governador -Geral Joaquim Pinto de Magalhães, «tendo subido á minha presença varias queixas dos moradores do districto de Quilimane contra a illegal e insolita maneira, com que o capitão-mór das terras da corôa no referido districto tem decidido as questões cafreaes», nomeou uma comissão que «consultando os uzos, praticas e costumes cafreaes, em harmonia com o actual systema de legislação, proponha um regulamento que para o futuro sirva de norma para as decisões das questões cafreaes», (Portaria n.º 166, de 12 de Maio de 1852). No ano seguinte, estando concluído e aprovado o «Regulamento para o Capitão-Mór da Villa de Quilimane e seu termo», a Portaria n.º 393/A, de 4 de Junho de 1853, determinava a sua aplicabilidade imediata. Atente-se, todavia, que não era um regulamento de «questões cafreaes», como o «Código Cafreal do Districto de Inhambane», mas apenas um conjunto de disposições sobre o relacionamento jurídico entre as autoridades do distrito e as populações africanas no julgamento dessas questões. Uma portaria de 9 de Julho de 1855, emanada pelo Governador-Geral, mandava observar um «código de milandos» no distrito de Inhambane que, entretanto, nunca fora até então publicado. Tratava-se de um código de usos e costumes dos povos bitongas — população circundante de Inhambane — elaborado em 1852 por um conjunto de «moradores versados nos usos e costumes cafreaes» daquele distrito, «com o auxilio dos regulos bitongas Tembe e Inhampossa habitantes da villa, Inhampeta, Inhamotitima e Saranga habitantes da outra banda». O Codigo Cafreal do Districto de Inhambane foi concluído em 29 de Setembro de 1852, reconhecido pela secretaria do governo distrital em 15 de Outubro do mesmo ano, embora nunca tenha sido publicado e, ao que supomos, distribuído ou divulgado sob qualquer forma. Em 1884 este mesmo «Código dos Milandos Inhambenses» chegou ao conhecimento do Governador-Geral da província que o devolveu ao governador de Inhambane para ser justificada a questão de nunca ter sido aprovado pelo governo-geral da província, pois nunca fora enviado para a Secretaria-Geral. Esse mesmo despacho de 1884 nomeava nova comissão para o ordenamento de um novo Código, o qual só ganharia letra de forma ao ser publicado em 1889 sob a designação de «Código dos Milandos Inhambenses (Litígios e Pleitos)», agora devidamente sancionado pela Portaria Provincial n.º 269 de 11 de Maio de 1889. Não seria essa, de todo o modo, a última elaboração do Código. Em 1908 conheceria ainda uma outra versão, mais completa, sob a designação de Projecto de Regimento de Justiça Cafreal ou «Código de Milandos» do Districto de Inhambane». Todas estas vicissitudes do Código dão conta da forma titubeante, por vezes contraditória, em que se situava o pensamento e a acção colonial na segunda metade de Oitocentos. Entre Sá da Bandeira, o grande arauto da causa liberal durante o século XIX e que em 1873 fizera publicar O Trabalho Rural Africano e a Administração Colonial — onde, manifestamente, perpassa uma visão romântica das sociedades africanas e defensora da aplicação do art.º 145 da Carta Constitucional que pugnava a igualdade de direitos e obrigações de todos os cidadãos portugueses, independentemente da raça, cor ou religião — e António Enes, o implacável centurião, o «pacificador» de final do século que olhava os africanos como uma massa de ociosos que haveria que civilizar pelo trabalho [«…a quem só pelo trabalho pode entrar no grémio da civilização», (1893, Moçambique. Relatório apresentado ao Governo de Sua Majestade)], se inscrevem os vários entendimentos contraditórios do omnipresente conceito português da assimilação.

20.9.03

Serviços de Informações Militares e companhias majestáticas 
Zeferino Z., leitor atento dos posts que temos vindo aqui a publicar, enviou-me email chamando-me a atenção para a recente edição de Análise Global de uma Guerra: Moçambique, 1964-1974, do Major Francisco Proença Garcia. Gostaria de recomendar a sua leitura àqueles que vão cruzando os vastos territórios desta «Companhia de Moçambique», mas por ainda a não ter lido seria presunção exagerada da minha parte. Todavia, sabendo que o Major Proença Garcia, ao que suponho, provém dos serviços de informações militares é garantido que a obra contém dados muito pertinentes. Todos aqueles que investigam sobre a guerra colonial conhecem bem o verdadeiro muro de silêncio que a rodeia, a grande dificuldade no acesso aos arquivos militares e a total inacessibilidade aos arquivos dos serviços de informações militares. Onde param, por exemplo, os arquivos do S.C.C.I.M.? Os Serviços de Centralização e Coordenação da Informação de Moçambique eram uma estrutura coordenadora dos serviços de informações coloniais em Moçambique, operada por civis (sobretudo altos quadros da administração civil, como Melo Branquinho, Ferraz de Freitas, entre outros) mas enquadrada por militares (sabe-se que a estrutura homóloga em Angola, o SCCIA, era dirigida pelo General Pedro Cardoso). Por ser militar e por ter demonstrado em anterior investigação publicada em livro (Guiné 1963-1974: Os Movimentos Independentistas, o Islão e o Poder Português, 2000) um acesso privilegiado a fontes militares de natureza reservada ou confidencial, é de supor que o livro do Major Francisco Proença Garcia reúna informações inéditas. Para já, e graças à prestimosa colaboração de Zeferino Z., transcrevo, com a devida vénia ao autor, umas breves passagens (pp. 48-49) sobre as companhias majestáticas:
«A ocupação efectiva exigida em Berlim foi assim levada a cabo por comandos e subcomandos de administração militar, posteriores circunscrições e postos de administração civil (organização administrativa de 1907) ou então por Companhias Majestáticas, como a de Moçambique e do Niassa. (...) A Companhia de Moçambique, com poderes majestáticos por cinquenta anos, foi fundada por Paiva de Andrada em 1888 e cobria a área correspondente às actuais Províncias de Sofala e Manica. O Estado Português teve um aparecimento tardio nos Distritos do extremo Norte do território, pois, entre 1894 e 1929, a administração do território nessas paragens estava por conta da Companhia do Niassa, criada em Setembro de 1891 com capitais maioritariamente britânicos e dotada de privilégios por 35 anos. Esta cobria as áreas do Niassa e Cabo Delgado. A Companhia da Zambézia, fundada em Maio de 1892, constituída por 126 dos 134 prazos existentes no Distrito de Tete, não possuía privilégios majestáticos, mas era antes de tudo “ (…) uma máquina de conquista das terras insubmissas dos Distritos de Tete (em especial a norte do Zambeze) e depois de Quelimane (…)”, com a finalidade de explorar o mussoco e o trabalhador local. Assim, não será de estranhar que a FRELIMO interprete estas como companhias que “(…) fizeram a exploração económica e política do povo moçambicano durante os anos das suas concessões e mesmo depois (…)”. Esta retrospectiva histórica ilustra que, no actual território de Moçambique, as relações diárias entre portugueses e indígenas nem sempre foram as melhores, sendo muitas vezes pautadas por lutas sangrentas, dada existir resistência da parte de alguns povos rebeldes e sublevados à afirmação da soberania Portuguesa, assim o comprovando o elevado número de acções armadas desencadeadas para imposição ou restabelecimento da mesma. Por forma a ultrapassar os problemas levantados por uma população das mais diversas origens e etnias, era fundamental para o Poder português conhecer os povos que habitavam o vasto território sobre o qual tinham, mas não exerciam de facto, direitos de soberania».
Entretanto, se algum dos leitores do «Companhia de Moçambique» já teve oportunidade ler a obra do Major Proença Garcia e a quiser partilhar connosco desde já aqui fica disponibilizado um espaço de apresentação do livro.

19.9.03

Codificação dos «usos e costumes indígenas» - 1: as origens. 
Desde meados do século XIX, e em resultado da dominância das correntes liberais, que se começou a perceber um conjunto de incompatibilidades entre o direito civil e penal português e a sua realização nas colónias, junto das populações «indígenas». É certo que no Estado da Índia o reconhecimento dos usos e costumes locais remonta ao século XVI. Data de 16 de Setembro de 1526 o «Foral dos usos e costumes das Novas Conquistas». Mais tarde, já no século XIX é aprovado em 1834 um «Código dos usos e costumes dos habitantes não cristãos de Damão», que foi substituído, em 1865, pelo «Novo Código dos usos e costumes dos habitantes não cristãos de Damão e Diu» e desde 1854 estava em vigor, para a restante parte do Estado da Índia, o «Código dos usos e costumes das Novas Conquistas». De igual modo, por essa altura em Macau um organismo especial intitulado Procuratura dos Negócios Sínicos regulamentava a vigência do direito chinês nas questões entre chineses [ver J. M. Silva Cunha, 1951, «O sistema português de política indígena no direito positivo desde 1820 à última revisão da Constituição»]. Por isso mesmo, quando em 18 de Novembro de 1869, em execução do artigo 9.º da Carta de Lei de 1 de Julho de 1867, é emanado pelo poder metropolitano um decreto mandando aplicar no espaço colonial o Código Civil português, havia o cuidado de ressalvar, no seu artigo 8.º, «os usos e costumes, que não se opusessem à moral ou à ordem pública, não só dos indígenas autóctones das nossas possessões, mas também dos imigrantes orientais com uma civilização própria como os baneanes, bàtias, parses e mouros, reiterando-se […] o velho pensamento da nossa política de ocupação, qual o de evitar, tanto quanto possível, reacções violentas do gentio contra a nossa interferência na sua vida social, muito essa interferência visasse a transformação moral e económica das populações do sertão, no sentido de as integrar na civilização cristã».
Naturalmente, esta surpreendente contemporização incidia apenas sofre os factos jurídicos de natureza civil, isto é, dizia respeito quase que exclusivamente às relações entre «indígenas» e, como seria de esperar, só muito excepcionalmente abrangia as questões contra esses mesmos «indígenas». De qualquer modo, pode afirmar-se que o decreto de 1869 é a primeira disposição legislativa que em normas expressas reconhece a validade dos direitos privados consuetudinários das populações africanas sujeitas ao domínio colonial português. De resto, Rebelo da Silva, o ministro que elaborou esse decreto de 1869, explicita no relatório que o antecede: «Esta concessão representa o reconhecimento de uma necessidade que as nações mais adiantadas não hesitam em confessar, garantindo não só os usos e costumes dos indígenas, mas admitindo até para a sua aplicação tribunais especiais». Todavia, mesmo antes de 1869 as autoridades coloniais locais tinham adoptado pontualmente, ou por iniciativa própria, ou em obediência a instruções esparsas provindas do Ministério da Marinha e Ultramar, uma atitude de contemporização com os «usos e costumes indígenas».

16.9.03

As políticas coloniais do Estado Novo - 5 
Em síntese, poder-se-á afirmar que no período pós-guerra o Estado Novo ensaiou, no plano pouco mais que jurídico-formal, uma reforma da sua política colonial, reforma essa que só seria verdadeiramente assumida com o advento das movimentações independentistas e o início da guerra colonial, já na década de 60. Mas esse aparente intento reformista nas colónias estava em plena contradição com a situação política «interna», na metrópole. Os anos 50 são, reconhecidamente, os «anos de chumbo», com o Estado Novo a retomar, em força, o controlo da situação política interna. Encorajado, é certo, pelo apoio dos seus aliados ocidentais. Eisenhower, presidente dos EUA, afirmaria, referindo-se a Portugal, que «ditaduras deste género são necessárias em países cujas instituições políticas não são tão avançadas como as nossas» [cit. em José Freire Antunes (1992), Kennedy e Salazar. O leão e a raposa]. Afinal, o mesmo tipo de asserção que permitia ao Estado Novo justificar a sua dominação «civilizacional» nas colónias.
Dois factos, em particular, virão a marcar a transição dos anos 50 para a década de 60: por um lado, o avivar da contestação ao regime após a campanha «delgadista» para as eleições presidenciais de Maio de 1958; por outro lado, o romper dos conflitos armados nas colónias, logo em 1961. Ambos terão uma profunda influência na situação colonial portuguesa. Inicia-se, então, uma nova (e derradeira) fase na política colonial portuguesa, ditada não só pela imposição definitiva de um quadro internacional desfavorável à manutenção da situação colonial, como também pela contestação interna, quer no contexto metropolitano, quer na frente colonial. As guerras coloniais viriam, por si só, a determinar efeitos profundos nas sociedades e economias tradicionais africanas, com, entre outros, deslocação forçada de etnias, perca de colheitas agrícolas, urbanização e proletarização aceleradas de importantes sectores das populações indígenas. O regime promove, então, disposições legislativas abolindo as culturas obrigatórias, o trabalho compelido e o estatuto do indigenato [Decreto-Lei n.º 43893, de 6 de Setembro de 1961], no esforço determinado de uma reforma consequente protagonizada por Adriano Moreira, aparentemente capaz de ultrapassar os meros projectos de intenções que tinham marcado toda a década de 50. Assinale-se, por exemplo, o ocorrido com o já referido 1.º Plano Quinquenal (1953-1958) que, pretensamente, afirmaria a integração das economias da metrópole e das colónias: só em 1957, já no término do Plano, foi regulamentada a eliminação de barreiras alfandegárias no comércio entre as colónias (Decreto-Lei n.º 41026, de 9 de Março de 1957) e estabelecido o novo regime de pagamentos interterritoriais (Decreto-Lei n.º 41403, de 27 de Novembro de 1957).
Sabemos hoje que todas as disposições reformistas de Adriano Moreira estavam já deslocadas no tempo, quer porque se confrontavam com os interesses da facção ultramontana dominante no regime, quer porque, mesmo nas suas melhores intenções, tinham sido largamente ultrapassadas pelas reinvindicações nacionalistas. Do ponto de vista meramente político, à partida a guerra colonial estava perdida.

11.9.03

As políticas coloniais do Estado Novo - 4 
O início da década de 50 colocou à política colonial do Estado Novo o maior de todos os desafios com que até então se tinha defrontado: não bastava uma simples adaptação, um «saber durar», impunha-se uma profunda reforma que, se levada às últimas consequências, poderia ter conduzido a situação colonial portuguesa à sua própria negação. Como hoje sabemos, não foi essa, de imediato, a via escolhida, mas os anos 50, em virtude das pressões políticas externas [como reconheceria Adriano Moreira, «... o problema internacional não estava ausente ao discutir-se a revogação do Acto Colonial e a integração das suas disposições no próprio texto constitucional ... », (1960, Política Ultramarina] — mais do que qualquer movimentação nacionalista nas colónias [alguém designou os anos 50 nas colónias portuguesas como a «década da geração silenciosa»] —, inauguram uma nova fase da política colonial do regime com o alinhamento de toda uma série de medidas inovadoras, sobretudo do ponto de vista institucional. Tais medidas, mais do que um conteúdo, procuraram dar uma nova forma à situação colonial portuguesa. A «totalidade portuguesa» — indiciada no Acto Colonial de 1930 e parte integrante do texto constitucional de 1933 — foi formalmente alterada pela revisão constitucional de 1951: as designações «colónia» e «império» foram substituídas pelas correspondentes «província ultramarina» e «ultramar». Por outras palavras alterava-se a exterioridade «imperial» do regime mas não se mudava a sua essência.
Mas se no plano jurídico-formal o texto constitucional não foi além de uma operação de cosmética, no plano económico ocorreram verdadeiras mudanças de conteúdo, a mais importante das quais foi a introdução do conceito de planificação integrada. O plano quinquenal (1953-1958) — primeira planificação integrada da economia da metrópole e das colónias após o advento do Estado Novo — justificava-se pela necessidade de, uma vez que as colónias passaram a ser «rentáveis», abandonar o princípio de «autonomia financeira» que outra coisa não tinha feito senão entregá-las a um depauperamento progressivo nos anos subsequentes ao Acto Colonial.
A grande marca da apregoada revogação político-administrativa ocorreu, todavia, no plano social. Em primeiro lugar, e em manifesto reforço à evocação da integração económica, sucedem-se ao longo da década de 50 toda uma série de disposições legislativas referentes ao regime de trabalho indígena, tentando pôr cobro, pelo menos no plano jurídico, ao trabalho compulsivo. Por outro lado, o texto constitucional de 1951 sublinhou o princípio da possibilidade de «assimilação cultural e espiritual» das populações indígenas da Guiné, S. Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Timor, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, instituía o regime de indigenato para Angola, Guiné e Moçambique, «cujas populações nativas não alcançaram ainda o nível de cultura e o desenvolvimento social dos europeus, como possuem as de Cabo Verde, Índia Portuguesa e Macau», [Estatuto dos Indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, (Maio 1954)]. Mas quer o trabalho forçado, quer a discriminação entre «portugueses brancos ou de cor» e «indígenas», só terminariam por completo no quadro das grandes reformas da política colonial portuguesa no início da década seguinte, desencadeadas pelos levantamentos nacionalistas em Angola durante o primeiro semestre de 1961.

10.9.03

As políticas coloniais do Estado Novo - 3 
Referimo-nos, em post anterior, às várias faces que cada uma das fases da política colonial do Estado Novo poderão ter assumido. Em primeiro lugar, o «Acto Colonial» de 1930, o qual forneceu as grandes orientações da política colonial portuguesa até, pelo menos, ao início da 2ª Guerra Mundial: «nacionalização das colónias», expressa, por exemplo, pelo termo de concessão das companhias majestáticas; «descentralização administrativa e autonomia financeira» [Acto Colonial, artº 28.º], mecanismo que outra coisa não pretendia atingir que não fosse uma forte contenção de despesas e retracção de investimentos nas colónias. Logo em 1937, e em consequência do crescimento da economia mundial — resultante dos esforços de preparação para a guerra —, o Estado Novo procurará «rentabilizar» as colónias, institucionalizando as culturas obrigatórias e repondo a centralização financeira. Os anos da guerra — e os que imediatamente se lhes seguem — correspondem a um período de expansão da economia colonial. Nos primeiros anos da década de 30 o conjunto das colónias, enquanto parceiro económico, assegurava 10% do valor global das importações da metrópole, mas em 1942, no auge da guerra, esse valor elevar-se-ia a 23%. Angola, por exemplo, não exportava mais do que 18.000 toneladas de café por ano, mas logo a seguir à guerra exportaria cerca de 40.000 toneladas; 4.000 toneladas de sisal era quanto aquela colónia exportava, em média, nos anos 30, mas logo após a guerra essa cifra quase triplicou. Todo este crescimento económico assentava, naturalmente, no reforço da legislação laboral indígena — a que voltaremos em post futuro — e num renovado enquadramento administrativo.
Ao nível político a vitória da causa aliada tornou a situação colonial ideologicamente insustentável, já que enquanto relação de dominação política não se coadunava com os próprios fundamentos político-ideológicos que tinham sustentado a luta contra o nacional-socialismo hitleriano. A «Carta das Nações Unidas», pela qual se fundou a O.N.U. em 24 de Outubro de 1945, explicitava no seu artigo 73.º o concerto anti-colonial da nova ordem mundial, e, consequentemente, não mais deixaria Portugal de ser confrontado nos areópagos internacionais com uma crescente contestação à sua presença colonial. Dez anos depois, em Abril de 1955, a Conferência de Bandung, na Indonésia, situou definitivamente o problema colonial: a independência incondicional dos territórios coloniais era apresentada como uma reivindicação inquestionável. Assim, se os propósitos anti-colonialistas insinuados no texto de constituição da O.N.U., em 1945, constituíram um aviso para a política colonial portuguesa, as conclusões da Conferencia de Bandung, dez anos depois, eram já uma séria e efectiva ameaça.

9.9.03

(Parêntesis straussiano) 
Apenas para agradecer ao F. Curate no seu Daedalus a transcrição de uma entrevista de Claude Lévi-Strauss ao jornal brasileiro «Estado de S. Paulo». Depois daquele debate sobre relativismo cultural e racismo com o Aviz e o Avatares de um Desejo ficámos todos mais esclarecidos.

As políticas coloniais do Estado Novo - 2 
Talvez pudéssemos começar por definir Estado Novo. A mais exaustiva caracterização económica, social e política do Estado Novo encontra-se no texto de Fernando Rosas (1986), O Estado Novo nos anos 30. Conquanto tenham surgido, nos últimos 20 anos, inúmeros estudos sobre o Estado Novo — os mais importantes dos quais de autoria de Fernado Rosas e da equipa de investigadores que lhe está associada — têm-se cingido, quase que exclusivamente, aos seus aspectos políticos, económicos e sociais, mantendo-se lacunar o conhecimento sobre os domínios da cultura e das mentalidades, particularmente aqueles relacionados com a situação colonial. Veja-se, por exemplo, de Fernando Rosas e J.M. Brandão de Brito (1996) o recente Dicionário de História do Estado Novo em que as entradas realcionadas com a situação colonial são quase inexistentes.
O período compreendido entre 1926 e 1959 corresponde à designada fase autocrática do Estado Novo. Por Estado Novo aqueles historiadores designam o período da história contemporânea portuguesa compreendido entre 1926 e 1974 e que corresponde «à modalidade nacional de superação autoritária da crise em que se debitam os sistemas liberais em geral, e o português em particular, desde os finais do século XIX». Uma plataforma político-institucional e económico-social que agregou, em diversas fases e modalidades, diferentes correntes anti-liberais e vários grupos sociais em torno de um projecto de «ordem» política e financeira gerido, desde 1932, por Oliveira Salazar, cuja grande habilidade política consistiu em enquadrar e salvaguardar os interesses e as estratégias dos diversos grupos e correntes arregimentadas, numa «notável capacidade de adaptação e plasticidade interna e externa e, consequentemente, de singular durabilidade» [Fernando Rosas (1994), «Introdução», em José Mattoso [dir.], História de Portugal. O Estado Novo, vol. VII]. Os 48 anos do Estado Novo compreenderam várias fases, ritmadas por um acontecimento de transcendental importância, não só para Portugal como sobretudo para o resto do mundo e, posteriormente, para o continente africano: a 2ª Guerra Mundial. Assim, num quadro muito genérico, o Estado Novo tem sido entendido como comportando duas fases principais: a que antecede o despontar do conflito de 1939-45, caracterizada pela afirmação e consolidação dos mecanismos de controlo político, económico e social; uma segunda fase em que, face aos desafios e contradições afirmados no pós-guerra, enveredou titubeantemente por (diversas) vias reformistas que anunciavam o esgotamento do regime, depois consumado com a ruptura revolucionária de 1974. Todavia, uma análise mais cuidada, sobretudo se centrada sobre a política colonial, demonstra — como veremos em próximos posts — que cada uma dessas fases do Estado Novo comportou, em boa verdade, «nuances» muito significativas.

5.9.03

As políticas coloniais do Estado Novo - 1 
Numa abordagem ainda superficial poderemos entender a política colonial portuguesa do Estado Novo como compreendendo duas fases principais, separadas entre si pelo surgimento dos movimentos independentistas nas colónias. Uma primeira fase, de 1926 a 1959, em que o Estado Novo geriu a situação colonial segundo um modelo «tradicional», autocrático e auto-suficiente, autêntico e consequente, em nome de uma supremacia civilizacional dogmaticamente afirmada que condenava as culturas dominadas a um papel meramente instrumental; uma segunda fase, de 1960 a 1974, em que a gestão da situação colonial nada mais foi de uma «gestão de sobrevivência» perante um fim anunciado, mesmo que tivesse posto em marcha todo um conjunto de reformas políticas, económicas e sociais capaz de transfigurar a própria situação colonial. Porventura, os indicadores económicos constituíram a parte mais visível dos resultados dessa reforma: Angola, por exemplo, conheceu, entre 1963 e 1973, uma taxa de crescimento médio anual do Produto Interno Bruto (PIB) na ordem dos 7%, contra os 4% da década anterior, valor esse que era o mais elevado dos países da África intertropical. Concomitantemente, no domínio legislativo, a revisão constitucional de 1971 e a Lei Orgânica do Ultramar, de 1972, constituíram as derradeiras tentativas institucionais de sobrevivência do regime colonial ao consagrarem o princípio da «autonomia progressiva» para os territórios ultramarinos, esbatendo ou procurando anular os pólos de um antagonismo irredutível. Uma análise mais detalhada, contudo, demonstrar-nos-á que as políticas coloniais do Estado Novo conheceram ainda outros desenvolvimentos e fases, de acordo com factores intrínsecos mas também, e sobretudo, em obdiência a imposições económicas e políticas exógenas.

3.9.03

«O erro de Lévi-Strauss» 
Prossegue a troca de ideias sobre a pertinência actual das afirmações de Lévi-Strauss na conferência de abertura do Ano Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial (1971). Agora juntou-se ao debate o F. Curate no seu Daedalus:
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«O erro de Claude Lévi-Strauss terá sido, pois, a tentação em cair no abismo do relativismo cultural, que, reificando a diferença, acaba por demonstrar a incomensurabilidade dos sistemas culturais. Como afirma Sperber [1992, O Saber dos Antropólogos, Lisboa, Ed. 70, p. 95] o relativismo, enquanto postura filosófica e científica, substituiu a hierarquização da diferença por “um apartheid cognitivo: se não podemos ser superiores num mesmo universo, que cada povo viva no seu próprio universo”. O neo-racismo coetâneo não faz mais do que apropriar-se das concepções antropológicas do relativismo cultural, que, se por um lado suspende os juízos acerca da diferença cultural, por outro lado valoriza desmedidamente essa diferença».
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Obrigado ao Daedalus por esta síntese tão esclarecedora. Entretanto o Francisco promete voltar ao tema. A seguir com interesse, portanto.

2.9.03

Ainda o relativismo cultural e o multiculturalismo 
Felizmente há gente assim, que pensa bem e consequentemente. O Bruno S.M., do Avatares de um Desejo, não desistiu de completar o seu post sobre Lévi-Strauss e o relativismo cultural, e ainda bem que o fez. E porque penso que esta sua mais recente reflexão vem ao encontro de muitas das minhas preocupações aqui no «Companhia de Moçambique», ao caracterizar e descrever o colonialismo, não resisto a, com a devida vénia ao Avatares de um Desejo, aqui transcrever o seu post:
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«Creio ser importante, antes de mais, ler as afirmações feitas em 1971 por Lévi-Strauss, resgatando o seu iminente cariz nostálgico em relação a um mundo pontuado de formas puras, registo poeticamente epitomizado em Tristes Tropiques (1955), obra onde o autor derrama a sua desolação, lamentando, qual Colombo atrasado, a “contaminação cultural” que já então marcava a vida dos grupos de Índios amazónicos. É por referência a este desencanto fundador com a “universalização do ocidente”, que Lévi-Strauss, na polémica conferência de 1971, vem articular um hino à criatividade das culturas com a sanção do desejo do seu fechamento e auto-exaltação. No entanto, se é defensável, ou pelo menos compreensível, que perante influências predatórias os grupos estabeleçam lógicas defensivas que se alimentam de amor-próprio, já a sanção de posturas etnocêntricas operada pelo antropólogo, constitui, em abstracto, um registo onde não é difícil pressentir algumas lacunas.
Em primeiro lugar, há que notar o facto da argumentação não se articular de um modo mais efectivo com a história e com as assimetrias nas relações de poder, com os imperialismos e seus epistemicídios, não estabelecendo um suporte conceptual distinto, susceptível de avaliar diferentemente movimentos opressivos das suas resistências (instigadas a apelar e a exagerar a tradição). A referida análise crítica do antropólogo, construída numa espécie de espectralidade em relação às realidades históricas e políticas, permitiu, por exemplo, que as suas ideias fossem apropriadas por grupos xenófobos dos países europeus, como suporte para a expulsão dos imigrantes sob o insólito pretexto da defesa da diversidade cultural dos povos. É aqui, creio, que Lévi-Strauss dorme com o inimigo.
Como Rui M. P. assinala, há um pudor em Lévi-Strauss para falar das relações de poder e das condições sócio-politicas que permitiram a empreitada antropológica. No entanto, são essas mesmas relações que subjazem o discurso de um Lévi-Strauss agastado com a permeabilidade do mundo ao projecto “evangélico” da modernidade ocidental (ironizo), de que o colonialismo é um dos seus dispositivos.
Assim, ao colocar em abstracto o vislumbre de um mundo de culturas irredutíveis, apaixonadas por si próprias, glorificando os seus heróis e constituindo inimigos em redor, Lévi-Strauss pouco mais pode do que augurar a promessa tantas vezes cumprida de antagonismos destrutivos e de tensões irresolúveis. Neste sentido, creio, a "paixão" recupera o sentido etimológico do confronto com a finitude.
Em segundo lugar, e isto coloca-me num registo levemente utópico, entendo que o esvaziamento da diversidade e da criatividade cultural do mundo não é a consequência necessária do encontro de diferentes formações culturais. E se é verdade que Lévi-Strauss tem subjacente a vocação epistemicida da modernidade ocidental, esquece-se que foi exactamente a paixão desta por ela própria, articulada com um sistema de exploração económica, que conduziu à mais violenta depuração da criatividade dos povos. O ressentimento histórico, as assimetrias económicas e militares, e a continuada exploração, vigiam as possibilidades para que o multiculturalismo seja bem mais de que um “corporate multiculturalism”, ou seja, a proliferação da diferença num “circuito do mesmo”. Não é a pureza intacta das culturas que garante a diversidade cultural, seria, isso sim, o interculturalismo feito de uma disposição para a aprendizagem com o outro, fora de relações de antagonismo.
Na verdade, as culturas nunca foram puras, quando muito híbridos estabilizados, atente-se no mais que polémico livro de Martin Bernal, Black Athena, onde o erudito autor fala das origens africanas da cultura grega e do processo de branqueamento da cultura helénica na construção de uma purificação ocidental. Nesse sentido, antes de celebrar o multiculturalismo importa perceber a multiculturalidade das nossas raízes/rotas, assim, creio, a paixão das formações culturais por elas mesmas poderá emular a paixão pelo híbrido criativo a advir encontro de culturas.
P.S. O facto da análise de Lévi-Strauss não se deter nas relações de colonialismo que permitiram a emergência da antropologia, como assinala Rui M. P., faz lembrar o paradoxo do fim da antropologia conforme desenhou Baudrillard. O filósofo evoca um episódio em que alguns antropólogos lutavam pela preservação de um grupo étnico isolado, os Tadasay, mas, ao quererem preservá-los do mundo ocidental, estavam a defendê-los a sua própria intromissão. Criando o sublime simulacro do fim da Antropologia. De facto, a antropologia alojou-se no colonialismo e na historicidade ocidental, mas, como diz Foucault em As palavras e as coisas, lá acabou por se libertar dos jogos históricos que a viram nascer para fazer o caminho inverso».

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Apesar da "simpatia" de Foucault, não estejamos tão certos disso. A forte ideologização de todo o aparato crítico do post-colonialismo faz-me ter muitas dúvidas sobre o sentido desse «caminho inverso». Após estas contribuições para-antropológicas, esperemos que o Aviz esteja um pouco mais «iluminado» sobre a extensão do conceito «multiculturalismo».

1.9.03

As armadilhas do relativismo cultural 
A propósito de uma polémica evocação de Lévi-Strauss em Avatares de um Desejo o meu amigo Francisco no seu Aviz refere que «as dúvidas e questões levantadas por Lévi-Strauss são muito actuais e acho que é um bom tema. Lévi-Strauss manifestou-se contra "o abuso de linguagem com que se confunde cada vez mais o racismo, definido no seu sentido estrito, com atitudes normais, mesmo legítimas e, em qualquer caso, inevitáveis". A partir daqui, um saltinho ao "multiculturalismo" dá-me sempre a ideia de que a expressão "dormir com o inimigo" é ainda mais dúbia». Vamos por partes, Francisco. Muito, muito antes da moda do multiculturalismo, evocava-se o relativismo cultural. Se este fosse o lugar adequado para uma arqueologia dos conceitos (tão do agrado dos académicos) depressa se descobriria uma genealogia extensa, envolvendo outros conceitos associados por relações de parentesco (conceptual) muito próximas, por vezes mesmo incestuosas. Quando, numa conivência assumida, a Antropologia se envolveu nos processos de gestão colonial, julgou poder desempenhar um papel algo filantrópico junto das populações dominadas; tudo se passaria como se a situação colonial não pudesse escapar da sua inevitabilidade e o antropólogo apenas destinado a tentar torná-la num mal menor, concorrendo, com as autoridades administrativas, para o bem-estar das populações submetidas. Ao assumir o colonialismo como uma mera situação de contacto cultural, a Antropologia limitou-se, nesse campo, a nada mais estudar que não fosse o ajustamento mecânico das culturas confrontadas pelo processo de dominação colonial. E mesmo reconhecendo que esse ajustamento produziria mudança social, ignorou a sua dimensão de violência e exploração. Nem mesmo o culturalismo americano dos anos 30 do século XX, na sua afirmação de diversidade e relatividade cultural, procurou conhecer e descrever essas tais «circunstâncias históricas» a que se referia Ruth Benedict quando, a propósito da expansão da civilização ocidental, analisava as circunstâncias que presidiram ao desaparecimento da consciência da diversidade e da relatividade de costumes e modelos sociais. Só após a 2ª Grande Guerra, com o subsequente despontar dos movimentos nacionalistas nos territórios coloniais, se procedeu a uma reavaliação do discurso antropológico em situação colonial. O colonialismo não poderia mais ser entendido nos termos de uma mera administração de uma realidade empírica, fechada sobre si mesma, à revelia de condicionalismos — sobretudo exógenos — de natureza económica, política e social. Descobriu-se, então, uma componente fundamental — melhor dizendo, fundadora — do sistema: a dominação. Toda uma série de operadores que lhe estavam associados, como o «contacto de culturas», a «aculturação» e o «sincretismo» deixaram de ser entendidos como manifestações de relações simétricas — give and take — para passarem a incorporar, na sua percepção, práticas dominantes e práticas dominadas. Assim sendo, meu caro Francisco, a utilização dos conceitos de relativismo cultural e multiculturalismo carecem de algum cuidado. Claude Lévi-Strauss foi, convém que se diga, o principal mentor de um relativismo dúbio. Trabalhando sobre materiais provenientes de contextos coloniais — e trabalhando brilhantemente — sempre contornou, quando não ignorou, a situação colonial, mesmo quando muitos dos seus discípulos (Jean Pouillon, Patrick Manget e mesmo Dan Sperber, entre outros) já afrontavam o «problema». Alguns anos antes dessa declaração na conferência de abertura do Ano Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial (1971), abordava a situação colonial [1966, «The Scope of Anthropology», Current Anthropology, vol. VII, (2)], numa das suas raras asserções sobre o tema, nos seguintes termos:
«Se o colonialismo não tivesse existido, o desenvolvimento da antropologia teria sido pelo menos retardado; mas, talvez, também a antropologia não tivesse sido levada, como se tornou o seu objectivo, a questionar o Homem integralmente em cada um dos seus exemplos particulares. A nossa ciência atingiu a maturidade no dia em que o homem ocidental se apercebeu que nunca poderia compreender-se a si próprio enquanto existisse uma única raça ou povo à superfície da Terra que ele tratasse como um objecto. Só então pôde a antropologia assumir-se como aquilo que é: um empreendimento de reassunção e remissão do Renascimento, de molde a difundir o humanismo a toda a humanidade».
Afinal, qual o lugar do colonialismo na História? Explicar-se-ia por uma qualquer espécie de «relativismo cultural» ou «multiculturalismo»? E qual a verdadeira dimensão destes conceitos?

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