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22.6.04

O conceito de assimilação no tardo-colonialismo português - 4: selvagens sem redenção. 
Seja pela evidência objectiva dos dados estatísticos, seja pelas noções, mais ou menos programáticas, que se deixam entrever na legislação colonial, podemo-nos aperceber que, pelo menos até uma fase muito tardia do colonialismo português em Moçambique — mas estamos em crer, que o mesmo se aplicaria às outras possessões coloniais portuguesas — o estatuto de cidadania que a lei possibilitava poder ser atribuído aos «indígenas», era um estado passageiro, uma fátua cosmética destinada a esconder a verdadeira natureza dos africanos, determinada por um anátema biológico de que nunca se poderiam libertar: o assimilado era um ex-«indígena» e o peso desta última condição sobrepunha-se inexoravelmente a qualquer aquisição posterior, fosse ela económica, cultural, social ou religiosa:
«No entanto, um dia, de dentro dessa casca de civilizado surgiu o selvagem, irredutível com a sua fé fetichista, mostrando que o fato e a “cultura” envolviam a personalidade de um vulgar habitante do sertão africano. Este indivíduo só poderia ser julgado nos tribunais ordinários e, contudo, o seu crime era revestido de todos os requisitos peculiares a essa vida cercada de mistérios e de crendices que fazem do negro uma criança timorata e, não poucas vezes, um agente dos mais bárbaros crimes. (…) Isto leva-nos a ver na adopção de religiões superiores por indígenas, uma simples alteração extrínseca da operada por uma revisão consciente de ideias velhas preteridas, pouco a pouco, por outras mais lógicas e ajustadas ao progresso humano. O agente psicológico destas alterações de forma é o muito característico espírito de imitação do negro. Toda a sua actividade imitadora é desacompanhada de qualquer juízo crítico. Faz-se por um automatismo censorial, por um simpatismo infantil que parece quase exclusivamente fisiológico. Na realidade, é o indígena, esse negro dominado por todas as crenças tradicionais, a quem o juiz tem de julgar, embora ele se lhe apresente de cabaia e cofió, exprimindo-se numa língua arabizada ou envergando um fato de boa flanela e falando correctamente a nossa língua», [José Gonçalves COTA, 1946, Projecto Definitivo do Código Penal dos indígenas da Colónia de Moçambique, acompanhado de um relatório e de um estudo sobre direito criminal indígena. Lourenço Marques, Imprensa Nacional, p. 55].

21.6.04

O conceito de assimilação no tardo-colonialismo português - 3: evidências. 
O «Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique», aprovado por Decreto-lei de 20 de Maio de 1954, consignava as modalidades segundo as quais qualquer «indígena» das colónias portuguesas podia ser «elevado» à condição de «assimilado». Em teoria, qualquer indivíduo que soubesse ler e escrever em português e demonstrasse possuir actividade laboral remunerada poderia aceder a essa condição. Mas os dados de um «Relatório da Aplicação do Estatuto dos Indígenas Portugueses referente aos anos de 1955, 1956, 1957, 1958, Província de Moçambique» elaborado pela Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas não deixam dúvidas quanto ao insucesso do processo de assimilação, fosse pela dificuldade em preencher os requisitos ou inconvenientes que daí advinham, fosse pelo parco empenho das autoridades administrativas ou decisores políticos em que tal processo se consumasse de forma escorreita. No ano de 1955, vigorando em pleno o novel Estatuto de 1954, apenas 28 «indígenas», em toda a colónia, obtiveram o estatuto de assimilado: 5 no distrito de Lourenço Marques, 4 em Gaza, 6 em Inhambane, 1 em Manica e Sofala, 10 na Zambézia, 2 em Cabo Delgado e nenhum nos longínquos distritos de Moçambique, Tete e Niassa. Nos anos seguintes, e até 1958, os valores foram subindo paulatinamente, mas, ainda assim, o total de todos os distritos para esses 4 anos não ultrapassou os 442 indivíduos, o que para uma população africana estimada em 6.000.000 de indivíduos nos fornece permilagens ridículas, se bem que de leitura muito pertinente: 1955 – 0,0046‰; 1956 – 0,0095‰; 1957 – 0,0156‰; 1958 – 0,0436‰. Se dúvidas existissem…

17.6.04

O conceito de assimilação no tardo-colonialismo português - 2: sua extensão. 
O texto transcrito no post anterior ajuda a compreender os baixíssimos índices de assimilação nas colónias portuguesas após séculos de um processo que se queria civilizatório. Mesmo após 1954, ano de publicação do último Estatuto de Indigenato, a Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas da Província de Moçambique revelava umas quantas dúvidas quanto à extensão do conceito de «indígena», por oposição ao de cidadania, mormente no que diria respeito a indivíduos que sendo filhos de «indígenas» teriam, entretanto, obtido o estatuto de cidadania, bem como em relação a descendentes de «indígenas», ainda que um dos seus ascendentes fosse de outra qualquer raça, incluindo a europeia. No relatório emanado em 1959 por aqueles Serviços, em todas essas situações os indivíduos nasceriam «indígenas» e teriam, sempre — apoiando-se no determinado pelo Estatuto —, de fazer prova de possuírem «ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses». O relatório conclui-se com um muito significativo capítulo intitulado de «Alguns reflexos negativos da aquisição de cidadania» no qual se apontam uns quantos exemplos relevantes:
«O operário ou empregado que obtém a cidadania, dificilmente consegue permanecer no mesmo lugar. E isto porque a empresa já não o quer ao seu serviço, uma vez que passa a ser sindicalizado e a auferir salários correspondentes às tabelas oficiais e, a ser assim, pagando-lhe o mesmo, prefere o empregado europeu. Uma das formas de não perder o emprego é a conivência com a empresa, declarando receber o que de facto não recebe, para continuar a auferir o anterior salário».

16.6.04

O conceito de assimilação no tardo-colonialismo português - 1: introdução. 
«Alguns nativos, mostrando-se divorciados dos usos e costumes tradicionais da sua raça, falando e escrevendo a língua portuguesa, conseguindo pelo trabalho um nível de vida que os colocam num plano económico muito superior ao da maioria dos nativos, reunindo, enfim, todos os requisitos legais para serem considerados não indígenas, são por vezes autores de crimes com determinantes fetichistas. Há nesses indivíduos uma aspiração fátua a “branco”; mas, no fundo do seu ser, persiste a índole supersticiosa da raça de que pretendem libertar-se moralmente; conseguem, por exemplo: evitar o contágio dos meios sertanejos, abster-se de intervir nos batuques, nas cupalhas (culto manista). Conseguirão mesmo renunciar ao regime poligâmico, que eles sabem condenado pelas leis e moral dos europeus; mas o que dificilmente conseguirão é expurgar do seu subconsciente os tóxicos resíduos da supersticiosidade ancestral que os determina, na maioria das suas acções, como uma fatalidade biológica implacável».
José Gonçalves Cota, a quem tinha sido cometida a tarefa de redacção de um Código Penal e de um Estatuto de Direito Privado aplicáveis aos «indígenas» da colónia de Moçambique, ilustrava neste trecho de 1946 o entendimento colonial sobre o estatuto de assimilado. O estatuto de não-indígena ou de assimilado não era, portanto, uma prerrogativa dos africanos que conseguissem preencher os requisitos exigidos pela lei, mas apenas uma faculdade transitória, passível de caducidade regressiva pelo julgamento arbitrário, porque não previsto no corpo da própria lei, das autoridades administrativas ou judiciais.

1.6.04

A Igreja Católica colonial: conclusão. 
A postura de D. Teodósio Clemente Gouveia pode ser considerada como paradigmática no seio da Igreja Católica durante o regime colonial do Estado Novo. Era uma atitude que já vinha de longe: cabe aqui recordar que o «Código de Milandos Inhambenses», de 1889, a que fizemos referência muitos posts atrás, mereceu da hierarquia católica uma apreciação muito negativa. Poucos anos após a sua promulgação, o prelado de Moçambique, D. António Barroso, distribuiria um inquérito aos superiores das Missões indagando, entre muitas outras coisas, dos obstáculos ao «progresso moral e religioso» das populações. O Superior de uma das Missões do distrito de Inhambane responderia:
«O obstáculo capital que paralisa todo o progresso moral e religioso é a aplicação da doutrina do código cafreal deste distrito, aprovado e posto em vigor pelo governo. (…) Este código, no ponto que toca o casamento, aprova e favorece praticamente a poligamia, a concubinagem e o divórcio, três crimes sumamente opostos à lei de Deus e da Igreja», [D. António Barroso, 1895, Padroado de Portugal em África. Relatório da Prelazia de Moçambique, Lisboa, Imprensa Nacional, p. 106].
Esse fundamentalismo da Igreja Católica no campo colonial, tão veementemente afirmado pelo menos até ao dealbar da década de 60 do século XX — mais tarde, a guerra colonial viria a induzir em alguns sectores da Igreja posições mais eclécticas e até, num certo sentido, críticas do sistema colonial —, apoiava-se na noção omnipresente em toda a política colonial portuguesa de que a missionação católica era o principal instrumento de acção civilizadora das populações colonizadas, o processo mais eficaz de as salvar das concepções religiosas primitivas que sancionavam culturalmente ou estavam na origem de grande parte dos crimes «gentílicos».

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