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15.12.03

«Missão Etognósica de Moçambique» - 2: ignorância e anacronismo. 
A nomeação de José Gonçalves Cota, reputado jurista da colónia, como chefe da «Missão Etognósica da Colónia de Moçambique», por sugestão de Furtado Montanha, chefe da Repartição Central dos Negócios Indígenas, prosseguia, além do objectivo final de redacção dos códigos civil e penal para «indígenas», a partir do levantamento das concepções morais e jurídicas das populações autóctones, um objectivo paralelo, o de publicar, no termo dos trabalhos, um estudo etnológico capaz de transmitir aos funcionários coloniais uma ideia sobre a mentalidade das populações africanas. Na introdução à súmula etnográfica que Gonçalves Cota redigiria, o Chefe da Repartição Central dos Negócios Indígenas estabeleceria as divisões fundamentais dessa percepção dos «usos e costumes indígenas» [A. Furtado Montanha, 1944, «Prefácio», em José Gonçalves Cota, Mitologia e Direito Consuetudinário dos Indígenas de Moçambique, Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique]:
«Das três partes em que se divide a obra, as que maior interêsse devem merecer aos funcionários administrativos são, sem dúvida, a primeira parte, que diz respeito a religiões, mitos, superstições e magia, e a terceira, que se ocupa do direito privado. A matéria da primeira parte habilitará os funcionários a conhecer o que deve ser tolerado e o que deve reprimir-se por cruel; a matéria da terceira parte contribuirá para a distinção entre o imoral impeditivo da evolução e o imoral com que se deve contemporizar transitóriamente a bem dessa própria evolução».
Evolução, transitoridade, assimilação, civilização, um aglomerado de noções congregadoras da ideologia colonial portuguesa, quase sempre adjectivas e raramente substantivas. O putativo mérito jurídico de Gonçalves Cota não o habilitava, contudo, a substantivar essas noções, preso que estava a conceitos decididamente anacrónicos, empenhadamente anacrónicos diríamos mesmo:
«Se aceitássemos à priori a classificação proposta por Morgan (…) concluiríamos que os nossos indígenas se acham, actualmente, na fase inferior da barbaria, visto que são inerentes a esta fase apenas os progressos relativos à criação de animais domésticos, ao cultivo de cereais e de outras plantas alimentícias e à introdução da olaria. (…) temos de concluir que nas sociedades moçambicanas existem elementos de progresso simultâneamente característicos de diferentes fases estabelecidas pelo eminente sociólogo inglês. (…) Mas o que é certo é que o atraso moral dos indígenas ainda é um facto incontestável e que não se lhes poderá impor-lhes para a sua formação medidas de efeitos tão imediatos e positivos como as que se lhes impõe para o seu desenvolvimento económico [cultura obrigatória, trabalho forçado]. Em conclusão: as sociedades nativas da Colónia acham-se, dum modo geral, na transição dum estado retardado para o da civilização, à custa da estimulação agrícola e da acção missionária…».
Estávamos em 1944, o funcionalismo malinowskiano já tinha feito o seu curso, o estrutural-funcionalismo de Radcliffe-Brown e Evans Pritchard dava o seus primeiros passos e Gonçalves Cota evocava o Morgan de Ancient Society (1877). Será necessário determo-nos por muito mais tempo no quadro teórico que enformava o texto de Cota? Estamos em crer que não!

5.12.03

«Missão Etognósica de Moçambique» - 1: enquadramento. 
Por despacho de 31 de Julho de 1941 do Governador-Geral de Moçambique, General José Tristão de Bettencourt, é criada uma «Missão Etognósica de Moçambique» que, apoiada no estudo etnográfico das populações da colónia, deveria proceder à elaboração dos Códigos Penal e Civil dos Indígenas de Moçambique. A «Missão Etognósica de Moçambique» foi entregue à chefia de José Gonçalves Cota, eminente jurista e advogado da colónia, que daria os seus trabalhos por concluídos durante o ano de 1946, com a publicação de Projecto Definitivo do Código Penal dos indígenas da Colónia de Moçambique, acompanhado de um relatório e de um estudo sobre direito criminal indígena e de Projecto definitivo do estatuto do Direito Privado dos indígenas da Colónia de Moçambique, precedido de um estudo sumário do direito gentílico. Os materiais etnográficos que serviram de suporte à elaboração dos dois projectos, Gonçalves Cota fê-los publicar em 1944 sob o título Mitologia e Direito Consuetudinário dos Indígenas de Moçambique, acompanhado do muito significativo subtítulo «Estudo de Etnologia mandado elaborar pelo Governo Geral da Colónia de Moçambique».
Já aqui sublinhámos, em anteriores posts, que o ano de 1941 marca o início de uma nova fase da administração colonial do território. A realização na Metrópole, no ano anterior, da grandiloquente Exposição do Mundo Português, antecedida, como preparação, da Exposição Colonial do Porto, em 1935, forneceu — não apenas para Moçambique, é certo — o enquadramento ideológico para uma nova empresa. Então, como nunca, estavam reunidas as condições práticas, mas também superestruturais — as exposições, os congressos, as disposições e regulamentações legislativas (o Acto Colonial, a Carta Orgânica do Império Colonial Português) — para um exercício efectivo de administração colonial.
Um passo decisivo para a afirmação da administração colonial, como já vinha sendo defendido desde quase há um século, era o estabelecimento de normas jurídicas para o exercício da função judicial colonial sobre os «indígenas». Não apenas como expressão de uma dominação colonial, mas, também deve ser referido, em alguns casos as próprias populações colonizadas procuravam crescentemente a administração como instância de recurso para os seus milandos (disputas de direito civil), sobretudo nas regiões onde as autoridades tradicionais, que podiam ser nomeadas ou destituídas dos seus cargos ao bel-prazer da administração colonial, perderam prestígio ou se encontravam fragilizadas.

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